1000 dias sem resposta: justiça por Marielle, Anderson, João Alberto, Emily, Rebeca...

"Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?", escreveu um dia antes de ser assassinada. São mil dias sem Marielle Franco e mais tantos outros dias de tantos outros nomes vitimados pelo genocídio negro brasileiro.

Hoje se completam mil dias da execução da vereadora e militante política carioca Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, #1000diassemresposta. Os supostos assassinos — ex-policiais — estão presos, mas ainda não foram julgados. Semana passada, durante uma operação policial na Baixada Fluminense, duas garotinhas, Emily e Rebeca, morreram ao serem alvejadas por balas “perdidas” — que insistem em encontrar corpos negros nas periferias do país. Em 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto foi brutalmente assassinado por dois seguranças do Carrefour em Porto Alegre — um deles, policial, ambos funcionários de uma empresa comandada por policiais. Em maio, o garoto João Pedro, de catorze anos, perdeu a vida ao ser atingido por um tiro enquanto brincava no quintal de casa durante uma ação das polícias civil e federal no Rio de Janeiro.

 

O som de um tiro é inconfundível. O ardor de uma morte é um grito inaudito, um assombro; é absurdamente assustador. O engano vem das mãos que seguram fuzis. Os civis são cotidianamente confundidos com criminosos; uma bala, quando sai de um fuzil, nunca se perde, sempre encontra lugar.

– “A força do estômago e o combate ao terror”, de Letícia Miranda, no livro De bala em prosa

 

Ano passado, assistimos aos oitenta (na verdade, 257) tiros disparados pelo Exército contra um carro branco que levava uma família carioca negra, o que causou a morte de um músico e um catador de materiais recicláveis, ambos negros. Tivemos o caso da menina Ágatha, baleada quando voltava pra casa com a mãe, também no Rio de Janeiro. De acordo com dados do Monitor da Violência, em 2018 as polícias brasileiras mataram 5.716 pessoas e, em 2019, 5.804 pessoas. No primeiro semestre de 2020, as polícias brasileiras mataram 3.148 pessoas. E 75% dos brasileiros assassinados pelas forças de segurança no Brasil são negros. O número total de policiais e militares eleitos neste ano cresceu 39% na comparação com a eleição municipal de 2016. São tantos e tão revoltantes casos… Fora os que nunca ficamos sabendo.

Mesmo durante um ano eleitoral com relativa mudança na configuração geral das cadeiras nas câmaras municipais — 44% dos vereadores eleitos em 25 capitais são negros —, acompanhamos com angústia as ameaças constantes à vida de mulheres negras na política. Dentre tantas, foram públicas as ameaças de morte e ataques virtuais de ódio à deputada federal Talíria Petrone e às vereadoras trans Benny Briolly, de Niterói, e Duda Salabert, de Belo Horizonte.

Enquanto isso, o presidente da República se diz “daltônico” para a raça e o vice-presidente afirma que não existe racismo no Brasil (só nos Estados Unidos, segundo ele). Não é mera coincidência que tanto os homens que puxam o gatilho contra pessoas negras nas ruas quanto os que respaldam as mortes sentados em poltronas nos palácios modernistas de Brasília usem ou já tenham usado orgulhosamente uniformes militares. E o mais triste é que suas visões de mundo infelizmente ainda encontram eco em milhões de brasileiros. Assim, o genocídio negro avança. Até quando?

 

Desculpa, Belchior, mas não consigo parar de morrer. Sim, eu sempre morro, morro de fome, morro de sede, morro de bala perdida e de bala achada, morro com oitenta tiros e morro ao segurar uma furadeira, até morri com um guarda-chuva, acredita?! Bem, Belchior, morri até ocupando um cargo de vereadora, mesmo sendo uma das mais votadas. Para ser exato, morro a cada 23 minutos, morro até asfixiado por segurança. Para te ser sincero, este texto nem deveria ter linhas, pois eu não deveria estar vivo. Parece que ando contrariando as estatísticas, pelo menos por enquanto, e enquanto estou, digo que vivo, vivo mesmo morrendo, vivo porque resisto e insisto, mesmo com
todos me matando.

– “A morte todos os dias”, de Jonatas Bispo, em De bala em prosa

Todos os dias em que este nosso livro se mostra atual e relevante são dias tristes. De bala em prosa: vozes da resistência ao genocídio negro reúne textos de autores e autoras negras, pessoas diretamente impactadas pela escalada da violência fardada no país. Quem escreve aqui escreve a partir de um cotidiano claustrofóbico de violência e preconceito, com raízes bem fincadas na escravidão. Angústia e sensação de impotência escorrem pelas vírgulas e pontos finais. Resultado de uma chamada pública, a coletânea de textos está disponível para download gratuito.

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