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Após uma breve trégua, a fome voltou a se tornar um flagelo no Brasil. Em 2014, na esteira de uma intensa militância social e decisões políticas acertadas, havíamos finalmente saído do Mapa da Fome da ONU. Em 2018, porém, levantamentos do IBGE começaram a mostrar que a conquista se revertera. E a covid-19, que aterrissaria no país dois anos depois, espalhando-se com a ajuda do governo federal, agravaria uma situação que já se mostrava calamitosa.

Se imagens de pessoas buscando alimentos em caminhões de lixo, disputando ossos ou erguendo cartazes desesperados nas esquinas ganharam a imprensa e as redes sociais, podemos apenas imaginar as cenas de desespero vividas silenciosamente diante de panelas vazias ao redor do país.

Em dezembro de 2021, o país abrigava 125 milhões de pessoas com algum nível de insegurança alimentar e nutricional — que pode ser leve, moderada ou grave. Esta última representa a fome, que então assolava 33 milhões de brasileiros. Isso significa que 60% da população ou não tem o que comer, ou não sabe se fará a próxima refeição, ou tem medo de não conseguir se alimentar no futuro próximo. Não há nenhum indicador mais contundente para demonstrar que o Brasil está trilhando um caminho absolutamente equivocado.

A situação é, em si, estarrecedora, mas ganha tons surreais ao ser vivida por uma potência agropecuária que bate recordes de produção de commodities, com dezenas de milhões de toneladas de grãos e carnes exportados anualmente. Como gostam de frisar os representantes do agronegócio, o Brasil é um dos celeiros do mundo, responsável por alimentar um bilhão de seres humanos ao redor do planeta. Não consegue garantir, contudo, comida na mesa do conjunto da própria população. Definitivamente, o problema não é a escassez: a fome é um fenômeno político.

Em 27 textos assinados por economistas, nutricionistas, sociólogos, agrônomos, pesquisadores e militantes do movimento negro, quilombola, sem-teto e da agroecologia, Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro aborda essa triste mazela a partir de uma visão multidisciplinar, tal como propunha o intelectual pernambucano. O objetivo é compreender por que voltamos a ser assombrados pelas formas mais graves da fome tão pouco tempo depois de acreditarmos tê-las vencido.

A resposta é simples: tamanho retrocesso é resultado do desmonte de uma série de políticas públicas empreendido a partir de 2016 pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

De acordo com as Nações Unidas, o Brasil havia conseguido desvencilhar-se da crueza da fome devido ao aumento da renda da população por meio da geração vinte milhões de empregos formais; à valorização do salário mínimo bem acima da inflação; aos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família; ao investimento na merenda escolar; ao fortalecimento da agricultura familiar; e à participação social em instâncias de governança como o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), entre outras ações.

Após o golpe jurídico, parlamentar e midiático que destituiu Dilma Rousseff, essas e outras políticas públicas foram sistematicamente abandonadas. Em um cenário de crise, congelamento de gastos públicos e extrema desvalorização do trabalho, a desigualdade recrudesceu: a fome aumentou, e o número de bilionários também: em 2021, eram 315 no país, algo inédito.

Apesar de todas as evidências, os donos do poder continuam dizendo que a melhor maneira de combater a fome é com mais plantio e mais colheita, com mais agrotóxico, desmatando e expulsando povos tradicionais de seus territórios, se for preciso — falácias que Josué de Castro rebateu há 75 anos. Resgatar suas ideias agora, mais do que prestar homenagem ao seu pioneirismo, é restabelecer uma visão sistêmica sobre um problema que precisa ficar definitivamente no passado.

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