A indispensável provocação da não monogamia

Sai no Brasil O desafio poliamoroso. Livro parece ainda mais relevante num tempo em que velhas noções de família se esgarçam; e num país ambíguo, onde convivem a profusão de arranjos afetivos e a brutalidade persistente do patriarcado

Por Marília Moschkovich
Publicado no Outras Palavras

 

Era o começo do inverno em Berlim e eu carregava quase dez quilos de carne no ventre. Meu companheiro, pai da minha filha, tinha saído para encontrar uma namorada, e eu esperava uma pessoa querida me trazer o pacote. Ela havia me dito, semanas antes, que estaria na cidade de passagem e poderia me levar alguns livros da Espanha, onde o debate sobre não monogamia, poliamor e novas configurações relacionais andava bastante quente, e alguns trabalhos novos tinham acabado de ser publicados. No final da gravidez eu tinha muito sono e dores nos pés, estava namorando outro homem além do meu companheiro e ele me fazia as melhores massagens. Dramas particulares desses relacionamentos à parte, era confortável e gostoso ser cuidada naqueles meses finais por duas pessoas que eu amava. Um vislumbre de alternativas ao massacrante modelo familiar que aprendemos ser o único possível, desejável, legítimo: um homem, uma mulher, casamento, filhos, exclusividade afetivo-sexual.

Fernanda passou em casa por uns minutos para me deixar os livros, e eu havia esquecido de como ela era (é) linda. Nos conhecíamos da graduação, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), embora nunca tivéssemos sido exatamente próximas. Até aquele momento, eu também não tinha entendido (costumo dizer que meu cérebro virou gelatina na gravidez, o que se aplica nesse caso, já que eu tinha todos os elementos para deduzir) que ela também vivia relações “não mono”, como apelidamos carinhosamente no Brasil todo o universo da não monogamia e das relações que às vezes são chamadas de “poliamor”, “relações abertas” e afins. Foi assim que Brigitte Vasallo chegou, impressa, às minhas mãos. Foi também por meio dessa mulher tão incrível — a Fernanda, aqui, no caso, com o perdão da Brigitte — que tomei conhecimento das entrevistas, artigos e do ativismo de Vasallo. Nos grupos e círculos brasileiros de não monogamia na internet, o nome de Vasallo também começava a chegar. No primeiro ano de vida da minha filha eu veria seu nome explodir entre as conversas sobre não monogamia no Brasil, por meio de traduções amadoras, vídeos, reportagens, entrevistas e PDFs da edição original de O desafio poliamoroso, que a Elefante acaba de lançar.

Para entender como um livro, uma autora, uma ideia transitam entre contextos, é preciso entender as relações materiais que determinam possibilidades para que isso ocorra de certas maneiras em detrimento de outras. É a primeira vez que temos, no Brasil, um texto de Brigitte Vasallo traduzido, editado e publicado profissionalmente. A obra original é de 2018, e esse curtíssimo período de três anos nos conta muito sobre a relevância do debate no Brasil.

No tempo que passei em Berlim, me dediquei a pesquisar modelos tradicionais e não tradicionais de família e relacionamentos, observando conexões entre as comunidades não mono na Alemanha e em nosso país. Alguns anos antes, quando vivi na França e na Argentina, também pude sistematizar as diferentes formas de construir experiências coletivas a partir da vivência não mono que encontrei por lá. Essas observações um tanto empíricas e bastante ligadas à minha experiência pessoal, quando articuladas com os estudos sobre gênero, família e trabalho feitos ao longo dos meus anos de formação como pesquisadora em sociologia e antropologia, me ajudaram a entender de maneira ainda mais aprofundada alguns fatores históricos e sociais determinantes para que a não monogamia ganhasse no Brasil cada vez mais espaço (no fim das contas, tornando obras como a de Vasallo ainda mais relevantes para o público do país). A viagem permite estranhar ao outro e a si mesmo, desnaturalizando processos até então bastante intuitivos. Quando falamos de relacionamentos afetivo-sexuais, flertes, família, quase sempre entendidos como processos instintivos ou corporais, o choque pode ser ainda maior, especialmente às pessoas mais atentas.

Sobre choque, descompasso e cultura

Espanha, França, Alemanha — seria um equívoco tomar a ficção da ideia de Europa como realidade no que diz respeito às práticas concretas relativas à sexualidade, aos relacionamentos amorosos, afetivos, sexuais, à família, à organização emocional da vida social, apagando as particularidades de cada um desses (e de outros) países europeus. Na Alemanha não se abraça muito, não se beija em público, e os termos dos encontros sexuais são muitas vezes negociados de maneira assustadoramente objetiva. Na França, não há palavras intermediárias de conotação mais ou menos baixa para serem usadas na hora do sexo; diz-se “fazer amor” ou “fuder” (que tem um peso bem maior do que aqui no Brasil, informais que somos), assim, sem nenhuma possibilidade entre esses dois polos. Fernanda me conta com humor anedótico da maneira como paquerou um catalão a noite toda sem qualquer resposta mais explícita dele às suas investidas, até que amanheceu e ela o chamou para ir para casa com ela — no que o catalão responde: “Ah, obrigado, de fato, o último trem já passou…”. Ela me relata também como é comum, na Espanha, que pessoas com quem se tem uma relação afetuosa respondam “não me conte da sua vida” quando confrontadas com os dramas e processos emocionais do outro. Esses exemplos de desencontro entre código sutis de troca emocional, sexual e afetiva marcam variações culturais, históricas e epistemológicas ligadas ao amor, à sexualidade, aos relacionamentos como um todo.

Seria igualmente um equívoco considerar que a posição de ex-colônias do restante do planeta seja suficiente para descrever a relação entre suas práticas afetivas e as normas e modelos impostos no longo processo colonial pelos europeus. As visões de mundo, ideias, normas e valores não circulam pelo mundo intactos. Isto é, uma certa prática de um país europeu em relação à sexualidade, à família, ao gênero acaba sofrendo intervenções e modificações quando confrontada com a sua transliteração no amálgama cultural da colônia ou ex-colônia. O que no Brasil tomou a forma da “antropofagia”, para usar o termo dos modernistas, ocorre também em maior/menor escala (ou com variações) em outros países.

Esse olhar crítico que reconhece as configurações diversas dos relacionamentos e, portanto, também do parentesco, da família e das práticas sociais relativas à sexualidade e à afetividade no contexto colonial já foi proposto por Mariza Corrêa no artigo “Repensando a família patriarcal brasileira”, de 1981. No texto, a antropóloga questiona a ideia de que as normas impostas pelo Estado no Brasil colonial efetivamente guiavam a vida social e as práticas concretas dos habitantes do país no período. Sua análise aponta para a necessidade de compreender as relações sociais estabelecidas em determinada sociedade, em certo tempo histórico, para além das normas registradas, escritas ou solidamente definidas. De outra maneira e com os limites de sua época, Friedrich Engels, em A origem da família, da propriedade privada e do Estado, também apontou para a importância de observar concretamente as práticas relativas a casamentos, sexualidade, afetividade e formação de grupos sempre em relação às normas do parentesco em diferentes sociedades.

Contemporaneamente, trabalhos de antropólogas ajudam a entender de que maneira uma certa ideia sobre o que deve ser uma “família” — instituição que se funda por meio do casamento e das trocas operadas por meio de casamentos, em nosso contexto diretamente ligadas à estrutura que chamo, como Vasallo, de Monogamia — é incorporada, interpretada e significada num país como o Brasil, onde, historicamente, nem o modelo da “família patriarcal” nem o modelo da “família nuclear” composta por pai, mãe e filhos vivendo numa mesma casa parecem condizer com a realidade de boa parte da população.

Em grande medida, o que está sendo dito por essas pesquisas e outras é que as relações sociais concretas que organizam essa esfera da vida social que entendemos como “família” e/ou “relacionamentos” (e que compreende o afeto, a sexualidade, o amor, a filiação, o cuidado, a convivência etc. — e onde a norma monogâmica opera) extrapolam a dimensão institucional, ao mesmo tempo que se transformam significativamente ao longo da história a partir das próprias ações humanas. Nesse sentido, é correto observar, como a autora citada acima — e o livro de Vasallo, que toca com maestria nesse ponto também —, que não se trata de relações determinadas por uma natureza, pela “genética” ou pela “biologia”.

Não à toa, a partir da segunda metade do século XX, em especial após as décadas de 1970 e 1980, dois processos diferentes contribuíram para o esgarçamento das categorias ligadas a esse universo (marido, esposa, mãe, filho, pai, namorado, namorada, ficante etc.), que já vinham sendo questionadas desde o final do século XIX. Por um lado, uma série de mudanças comportamentais foram provocadas pelos movimentos de juventude e pelos movimentos sociais como um todo, em especial o movimento feminista e o movimento LGBT (não à toa, movimentos cujos sujeitos políticos se encontram historicamente em posições subjugadas no esquema tradicional de relacionamentos, casamentos, família e trabalho doméstico e de cuidados), sobretudo no que diz respeito ao debate em torno de divórcios, heranças, guarda de filhos, direitos de adoção etc. Por outro, inovações tecnológicas também passaram a tensionar de forma ainda mais explícita as ideias consolidadas no Ocidente® sobre o que são e devem ser as relações afetivas, amorosas e familiares. Invenções como a pílula anticoncepcional, a fertilização in vitro, a implantação de embriões, a clonagem, a criação de bancos de esperma e óvulos, enfim, a biotecnologia reprodutiva como um todo, vêm desde então confrontando categorias como pai, mãe, filho, esposa, marido, etc. da maneira como compreendidas no senso comum e nas normas sociais e jurídicas de forma mais ampla.

Nesse cenário parece fazer sentido que as normas sociais em torno dos relacionamentos e da sexualidade também entrem em xeque. No Brasil, em particular, a instituição do casamento e a prática monogâmica têm ocupado lugares bastante contraditórios ao longo da história. Se é verdade que histórias como aquela narrada por Jorge Amado em Dona Flor e seus dois maridos ou aquela protagonizada pela atriz Regina Casé em Eu, Tu, Eles compõem o imaginário popular, também é verdade que são alarmantes os números de feminicídios cometidos por familiares, em especial maridos, namorados e cônjuges, muitas vezes motivados por separações, divórcios e tensões ligadas a essas possibilidades.

Também não é pouco significativo que os arranjos familiares brasileiros em grande medida não correspondam — por questões culturais, mas sobretudo econômicas — à fantasia da família “nuclear” urbana, composta por uma esposa/mãe, um marido/pai e seus filhos convivendo cotidianamente na mesma casa. Estima-se que cerca de 6% das crianças nascidas no Brasil em 2019 não tenham o nome do pai no registro (Revista Crescer, 30 ago. 2020). Entre a maioria que tem, não necessariamente há relação de convivência próxima ou de convivência domiciliar. Em 2007, data mais recente de publicação dessa série histórica pelo IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) apontou que menos da metade das famílias brasileiras seriam formadas por um casal com filhos, sendo que esse dado também não indica necessariamente a situação de convivência ou não no domicílio (especialmente se lembrarmos que a família pode ser formada por um casal com filhos, mas um dos adultos do casal, em geral o homem, no caso de casais homem-mulher, migrou a trabalho, por exemplo). Tudo isso sem falar nos arranjos que não necessariamente aparecem em registros e dados, como a convivência de múltiplas famílias ou núcleos familiares numa mesma casa, ou os casos de adoção informal. Enfim, há uma multiplicidade de arranjos familiares em vigor no Brasil, e apenas uma pequena parte deles pode ser razoavelmente bem descrito pela norma tradicional da família nuclear urbana, diretamente ligada à monogamia porque dependente da entidade Casal®, como bem coloca Vasallo. Ao mesmo tempo, vivemos hoje no Brasil um contexto político em que a disputa pela manutenção dos modelos e normas tradicionais da “família” se acirram, com políticas públicas desenhadas especificamente com o fim de tentar impedir seu esgarçamento, já em curso há pelo menos meio século.

Não à toa, o Casal® e a Família Civilizada® são construções que Vasallo coloca no centro de sua argumentação, atingindo um ponto nevrálgico da estrutura social, econômica, política e emocional-afetiva/simbólica que organiza nossas vidas. Ao identificar essas figuras como instituições sociais (embora não use exatamente essas palavras), ela extrapola o debate individualizador relativo às regras de exclusividade sexual, afetiva ou afetivo-sexual. Não se trata, para a autora, de julgar moralmente ou hierarquizar práticas individuais, mas de colocar em evidência estruturas invisíveis que conformam todos os aspectos dessa esfera da vida social. Este é um dos muitos motivos pelos quais a presente obra é útil para se pensar o Brasil, mesmo tendo articulações bastante limitadas à experiência europeia em algumas passagens. Ao propor a ideia de um “terror poliamoroso” de mão dupla, marcado pela simultaneidade entre o potencial perturbador ou revolucionário das práticas poliamorosas/não monogâmicas, de um lado, e o medo ou fobia social em relação às pessoas e grupos que os praticam (mesmo no caso da poligamia tradicional ou religiosa, como é o caso de algumas etnias indígenas brasileiras e de comunidades religiosas como a muçulmana, caso exemplar das fobias culturais europeias mais recentes), de outro, a autora também colabora para que seja possível nomear e compreender processos contraditórios como esses descritos aqui neste prefácio para nosso país.

Se este não é um livro exatamente acadêmico, no sentido de que não compartilha uma série de códigos da escrita científica ou mesmo da pesquisa, ele ao mesmo tempo parece provar em cada palavra que seu teor ensaístico é, na verdade, uma vantagem. Trata-se de um verdadeiro manifesto político que não deixa de lado o rigor analítico e metodológico em sua construção, parecendo articular as potências dessas duas dimensões discursivas. Os exemplos, a linguagem acessível, as explicações didáticas e bem situadas nos levam a uma investigação social ao mesmo tempo que provocam auto investigações múltiplas ao longo da leitura. Em O desafio poliamoroso, o pessoal é definitivamente político, no melhor sentido da expressão. Sem individualizar questões estruturais, e sem universalizar sua experiência pessoal, a autora se apresenta o tempo todo com sua humanidade falha e contraditória, dividindo conosco boas conjunções analíticas entre as experiências vividas, concretas, e a maneira como são conformadas por processos mais gerais. Ao fazê-lo, Vasallo lança mão também de uma radicalidade deslumbrante, possível somente quando extinto qualquer tipo de preciosismo egóico sobre as próprias vivências e experiências. Para ela, neste livro, tudo está em questão. Essa corajosa abordagem dá fôlego às suas análises, argumentos e também à leitura, especialmente para quem busca, na política, uma chave de compreensão para suas experiências e sua própria ética cotidiana.

Que o sentimento de “terror” descrito por Vasallo seja fagulha no intenso processo de questionar e destruir moldes e estruturas que, se já não nos servem bem, esperamos que num futuro breve nos sirvam menos ainda.

Também pode te interessar