Alcances e limites da vontade individual: quando a solidariedade não é suficiente

Pesquisadores e ativistas políticos, Markus Wissen e Ulrich Brand, escrevem do coração do capitalismo europeu. A partir daí, eles disponibilizam uma estrutura conceitual que nos permite localizar tendências que a pandemia acelerou e revelou. Em Modo de vida imperial eles investigam as formas pelas quais as normas de produção e consumo forjadas no Norte global são sustentada às custas da violência, destruição ecológica e sofrimento humano, especialmente no Sul global. Como introdução a este livro, estamos interessados ​​em colocar essas ideias em prática e em discutir essas ideias, e para isso convidamos Gabriela Massuh, Bruno Fornillo e Camila Moreno para conversar com Brand.

Publicado na Tinta Limón

 

[Continuação da conversa entre Gabriela Massuh [1], Bruno Fornillo [2], Camila Moreno [3] e Ulrich Brand sobre o livro Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global. Leia a primeira parte: Modo de vida imperial: as ressonâncias de um conceito. Você também pode ouvir a conversa na íntegra, em espanhol.

 

Ulrich: Eu gostaria de esclarecer um ponto em torno da discussão sobre a boa vontade individual. Ao nível da sociedade, ao nível dos discursos oficiais, há referências contínuas à boa vontade, às boas consciências. Eu chamaria isso de uma tendência à individualização da responsabilidade. Muitos de meus alunos, por exemplo, sentem todo o peso do mundo em seus ombros. E querem mudar o mundo, porque querem viver de maneira 100% ecológica, social e tudo mais. Nós insistimos com eles que o central são as condições sociais, políticas e mesmo infraestruturais que propiciam a falta de alternativas para os indivíduos, para os sujeitos. Por esse motivo, muitas e muitos se sentem desafiados pelas ideias do livro. Sentem-se desafiados pela questão da violência, pela questão da exclusão que está na base do conceito de modo de vida imperial. Mas isso não significa que é o sujeito que deve mudar, ou não só, mas que precisamos de uma mudança muito mais estrutural, cultural, política, social, etc; muito mais ligada, em suma, às condições de vida. O que é ambíguo, ou contraditório, é que o modo de vida imperial permite maior acesso ao mundo, oferece mais no plano material, até, supostamente, possibilita uma vida melhor. Mas é evidente que também restringe, se você quer viver de outra maneira, você quase não tem alternativas: a sociedade o envolve permanentemente com os desejos e imagens do modo de vida imperial.

Bruno: O livro faz parte de uma corrente de pensamento alemã que tem a ver com a tradição crítica da cultura. Nesse sentido, parece sensato retomar a ideia de Walter Benjamin de que todo documento de cultura é, ao mesmo tempo, um documento de barbárie. O livro, em certo sentido, é uma espécie de atualização contemporânea dessa premissa. Naturalmente, não podemos nos concentrar apenas nas questões de atitudes individuais, mas vincular a crítica a elementos organizacionais e sistêmicos mais fortes. Mas, a certa altura, ambos são importantes e devem ser retroalimentados de forma positiva. Ou seja, tanto os elementos organizacionais sistêmicos quanto as atividades diárias específicas. Porque o diabo está nos detalhes, e a ideologia também trabalha nos detalhes, nas nossas práticas concretas.

Outro ponto que gostaria de me debruçar é sobre a prática política. Não sei se na América Latina temos tantas dificuldades quanto ao conhecimento, ou elaborações teóricas, e sua relação com os modelos culturais clássicos, principalmente europeus. Parece-me que existe uma literatura, uma caneta muito ativa que trabalha constantemente para se diferenciar e para criar uma epistemologia do Sul – eu poderia citar inúmeras contribuições que vão nessa direção. Voltando a Gramsci, acredito que o problema da América Latina é de hegemonia, ou seja, está vinculado à prática política. Não tanto na construção do conhecimento, mas na relação desse conhecimento com o exterior. Temos um problema ideológico de trabalho ou, diria Gramsci, o problema de como nos relacionar com o “bom senso” da ideologia da população. Portanto, pode-se dizer que temos um problema de esquerda, em termos gerais, na América Latina: um hiato se construiu em relação ao que são os novos discursos emancipatórios e as práticas políticas concretas.

No que diz respeito aos movimentos sociais, embora no início do século tivessem uma potencialidade muito forte, posteriormente essa força se inclinou para discursos de tipo nacional-popular produtivista, deslocando soluções mais radicais, em particular no que se refere às transições. Então, me parece que a pergunta que devemos nos fazer é como fortalecer uma esquerda que tem um impacto hegemônico em relação ao debate público, uma esquerda com capacidade de se expandir dentro da sociedade civil – para dizer em termos gramscianos –, que é uma dívida que temos na América Latina. Na Argentina é muito claro: temos vislumbres de grandes movimentos sociais e territoriais, mas quando se trata de se traduzi-los na esfera política, ainda há um déficit. Mas não apenas na Argentina, em grande parte da América Latina. Em países como Bolívia e Equador, mas também no Chile e no Brasil, o discurso progressista ainda é hegemonizado por perspectivas desenvolvimentistas. Nesse sentido, parece-me que o ponto central tem a ver com a construção política. Não estou dizendo nada de novo, mas me parece que descentraria o problema da produção do conhecimento. Gostaria de saber mais sobre a eficácia de nossa luta ideológica no campo concreto da prática política, para colocá-lo com Althusser.

Camila: Há mais de uma década vem se desenvolvendo toda uma narrativa climática que hoje se tornou uma forma contemporânea de indulgências medievais: é possível pecar, mas também é possível comprar uma compensação pelos seus pecados. Isso desafiou, como disse Uli, uma geração de jovens que não conheciam o mundo fora da chave da emergência climática. E isso produziu um nível muito forte de angústia existencial na estrutura psicossocial. Portanto, embora as populações estejam cada vez menos ligadas às religiões históricas formais, embora a Igreja Católica tenha cada vez menos fiéis – e assim vemos como a Igreja se esforça para se reinventar e está associada às questões climáticas, como fez o Papa com a encíclica Laudato si’ e, mais recentemente, com o lançamento do Conselho para o Capitalismo Inclusivo com o Vaticano – transformações muito profundas estão ocorrendo na forma como as pessoas percebem a espiritualidade. Mas toda a infraestrutura da culpa cristã ainda está lá, embutida em nossa sociabilidade. E o mercado é muito eficaz em capturar isso e oferecer resgate por meio do consumo. Na Europa, por exemplo, impressiona como existem mercadorias com legendas do tipo: “Você está comprando e ajudando um grupo de mulheres na América Latina, essa mulher se chama X, ela é indígena e ela é mãe solteira, e aqui está o filho dela, e mora em uma floresta ameaçada etc”. É um nível simbólico de superexploração, porque eles precisam do subalterno, precisam de pessoas que ainda não são como eles para que as pessoas comprem e se sintam bem. Portanto, é claro que existem projetos interessantes, mas a maior parte é puro greenwashing. É um tanto escandaloso ver o tempo todo, nas embalagens de café, chocolate, açúcar, banana, etc., gente do Sul. Imagino que poderíamos fazer uma intervenção artística colocando fotos de europeus nas coisas que compramos no supermercado e textos criativos sobre como os ajudamos a sair da pobreza e a melhorar as suas vidas.

Em termos de reflexão sobre as contradições, como Uli levantou, um ponto que me parece central é a tendência super prescritiva em relação à mudança das dietas globais, que é uma agenda que tem crescido muito. Venho investigando sua relação com a transformação da indústria da carne e a dinâmica territorial e ambiental que essa transformação produziu no Brasil. Como alternativa, há uma ênfase na promoção de dietas saudáveis, ou seja, dietas que sejam oferecidas como boas para a saúde pessoal e para a saúde do planeta. São dietas veganas – “à base de plantas” –, principalmente aquelas em que é possível fazer simulações de carnes e laticínios a partir da soja. Bem, os impactos da expansão da soja dispensam comentários. Todos nós também sabemos que existem milhares de problemas na indústria global de carnes e no agronegócio. A questão é que a forma como o debate internacional está se desenvolvendo é muito moralizante, colocando as pessoas que comem carne como os bandidos, que ainda não estão cientes de como eles prejudicam o clima; e que essa grande transição para dietas saudáveis ​​deve ser feita colocando barreiras comerciais e impostos sobre o consumo de carne, bem como impostos especiais sobre bebidas alcoólicas ou tabaco. Tudo isso, além de ser muito cruel, politicamente não me agrada. Em contraposição a toda essa concepção do que é uma alimentação saudável para a população, seria necessário enfatizar uma luta política mais estrutural que coloque a soberania alimentar no centro da discussão. Nas periferias do Brasil, por exemplo, as pessoas têm cada vez menos acesso a alimentos frescos e saudáveis, que hoje são cada vez mais caros. E o que vemos é que as indústrias estão preparando todo tipo de comida para os pobres: milanesas falsas, imitação de nuggets de frango, etc. Então, por trás das boas intenções e da publicidade com celebridades veganas, o que vemos é que, impulsionado pela FAO [Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas] e pelas corporações, já está sendo desenhado o que é dieta a que essa classe de subumanos terá acesso. E é muito cruel, porque setores cada vez maiores da população nunca terão dinheiro para comprar carne de verdade, mesmo que seja carne sustentável.

“Estão preparando todos os tipos de comida para os pobres: milanesas falsas, imitação de nuggets de frango, etc. Por trás das boas intenções e da publicidade com celebridades veganas, o que vemos é que, impulsionada pela FAO e pelas corporações, a dieta a que essa classe de subumanos vai ter acesso já está sendo desenhada ”. (Moreno)

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[1] Gabriela Massuh nasceu em Tucumán, estudou Letras na Universidade de Buenos Aires e fez doutorado em Filologia na Universidade de Erlangen-Nürnberg. É escritora, editora, tradutora, professora e ativa promotora cultural. Por mais de duas décadas dirigiu o departamento de cultura do Instituto Goethe de Buenos Aires e fundou a editora Mardulce. Entre seus livros publicados está o ensaio El robo de Buenos Aires, a trama de corrupção, ineficiência e negócios que a cidade tirou de seus habitantes (2014) e os romances La omisión (2012), Desmonte (2015), La intemperie (2018) e Degüello (2019).
[2] Bruno Fornillo é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires e em Geopolítica pela Universidade de Paris 8; Pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet) da Argentina e é membro do Instituto de Estudos da América Latina e do Caribe da Faculdade de Ciências Sociais da UBA. Ele publicou Sudamérica Futuro, China global, transição energética e pós-desenvolvimento (Clacso-El Colectivo, 2016) e coordenou a publicação de Lítio na América do Sul. Geopolítica, energia e territórios (Clacso-IEALC-El Colectivo, 2019).
[3] Camila Moreno estudou filosofia e direito; é doutora em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Atualmente, está fazendo pesquisa de pós-doutorado (2019-2024) na Humboldt University, em Berlim. É autora de Brazil made in China (Fundação Rosa Luxemburgo, São Paulo, 2015) e A métrica do carbono (Fundação Heinrich Böll, México, 2016). Ela acompanha as negociações internacionais sobre o clima desde 2008.

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