‘Alimentos são mais do que a soma de seus nutrientes’

"Empresas se opõem ao conceito de alimentos ultraprocessados, pois estudos estão destacando malefícios de seus produtos", afirma Gyorgy Scrinis, autor de Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional

Por Carlos Minuano
Publicado no UOL Ecoa

 

“Empresas se opõem ao conceito de alimentos ultraprocessados, pois estudos estão destacando malefícios de seus produtos”, afirma em entrevista exclusiva a Ecoa Gyorgy Scrinis, professor de políticas públicas de alimentação da Universidade de Melbourne, na Austrália. Ele se refere a resistência que o termo ainda enfrenta e ao embate com as corporações “big foods” em diversos países, inclusive no Brasil.

“Ainda estamos nos estágios iniciais de uma compreensão mais exata de como os vários tipos de processamento tecnológico de ingredientes podem estar afetando nossa saúde”, observa o professor.

Scrinis também é autor do livro Nutricionismo (editora Elefante), lançado este mês no Brasil. A obra – publicada originalmente em 2013 – é considerada por especialistas, precursora de uma importante mudança de olhar sobre a alimentação humana.

Em seu livro, Scrinis defende que os alimentos são bem mais do que a soma de seus nutrientes. O alinhamento de pesquisadores brasileiros com essa ideia se consolidou por aqui na classificação Nova, que incluiu a categoria de alimentos ultraprocessados (como “cereais” matinais, refrigerantes e bebidas à base de “fruta”).

Elaborado pelo Nupens da USP (Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo), o sistema atualmente é aplicado para analisar padrões alimentares e seus impactos na saúde em muitos países.

O conceito norteou em 2014 a elaboração do Guia alimentar para a população brasileira, que orienta, claramente, evitar alimentos ultraprocessados.

Parceria com pesquisadores brasileiros

Em Nutricionismo, Scrinis não utiliza o termo alimentos ultraprocessados. O livro fala em “alimentos processados reconstituídos”, que significam quase a mesma coisa, segundo ele.

“O importante é ressaltar que o primeiro passo foi reconhecer as limitações da abordagem dos nutrientes e como isso distraiu os cientistas do estudo dos efeitos do processamento de alimentos”, explica Scrinis.

Em seu trabalho mais recente, o professor da Universidade de Melbourne passou a utilizar a classificação Nova e também a colaborar com o coordenador do Nupens, Carlos Monteiro, nas investigações dos alimentos ultraprocessados.

O estudo sobre técnicas de processamento de alimentos, ingredientes e aditivos nos produtos alimentícios, segundo Scrinis, foram cruciais para tirar o foco dos nutrientes.

E o professor reconhece que ainda há muito terreno a ser explorado no campo da pesquisa. “Muitos pesquisadores estão focados em estudar e debater quais são os mecanismos biológicos ou nutricionais específicos em alimentos ultraprocessados que podem prejudicar a saúde.”

 

Conceito enfrenta resistência

Ao identificar, com precisão, o que são e o estrago que podem causar os alimentos ultraprocessados, o conceito comprou briga principalmente com indústrias de alimentos e do setor de fast food que lucram – e muito – com esses produtos, observa Scrinis.

“Essas empresas temem a regulamentação de todos os produtos alimentícios ultraprocessados”. Segundo o professor, isso explica a pressão que o setor está fazendo sobre governos [de vários países] para rejeitar o uso desse termo em suas políticas e diretrizes alimentares.

E a chiadeira da indústria alimentícia tem aumentado nos últimos tempos. Na avaliação de Scrinis, porque em um curto espaço de tempo, muitos especialistas em nutrição e saúde pública em todo o mundo estão adotando o conceito dos alimentos ultraprocessados.

“Ao mesmo tempo, vários governos estão começando a incorporar o termo em suas diretrizes e políticas alimentares, incluindo Uruguai, Peru, Canada, França e Israel”, diz o professor.

Um dos obstáculos a ser superado no momento é a rede de cientistas ligados à indústria de alimentos que buscam desacreditar estudos mais recentes sobre ultraprocessados. “Para que esse termo realmente se consolide, as limitações do nutricionismo, e do enfoque redutor nos nutrientes, precisam ser entendidas por todos.”

 

O fiasco das gorduras trans

“Prefiro a manteiga à margarina, porque confio mais nas vacas do que nos químicos”. A frase da premiada ambientalista e especialista em política alimentar Joan Gussow abre um dos capítulos mais icônicos do livro Nutricionismo.

Scrinis conta que a partir da década de 1960, muitos especialistas em nutrição defenderam a margarina com base nas proporções relativas de gorduras poli-insaturadas e saturadas, ignorando a presença de ingredientes altamente processados no produto, incluindo as gorduras trans artificiais.

No capítulo, o professor relata a crise de reputação que a margarina enfrentou no início da década de 1990, quando estudos destacaram os efeitos nocivos das gorduras trans.

“Esses cientistas descobriram que as gorduras trans tinham um efeito ainda mais prejudicial sobre os níveis de colesterol no sangue do que as gorduras saturadas e, portanto, dentro da lógica da hipótese dominante da dieta/coração, representariam um risco maior de doenças cardíacas”, escreve Scrinis no livro.

Ao falar da margarina, Scrinis condensa sua teoria sobre nutricionismo, na qual funde as palavras “reducionismo” e “nutrição”, ou reducionismo nutricional.

“O nutricionismo é caracterizado por uma ênfase redutora nos nutrientes dos alimentos e dos padrões alimentares”, explica o autor no prefácio que escreveu para a edição brasileira de seu livro.

 

Obra propõe que comer deve ser algo simples

Apesar dos anos que já se passaram desde o primeiro lançamento, o livro Nutricionismo permanece atual, garantem especialistas. A edição brasileira do livro é fruto de uma parceria entre a editora Elefante, o site especializado em alimentação O Joio e o Trigo e a ONG ACT Promoção da Saúde.

“Esse livro representa uma ferramenta importante de diálogo com o estudo da nutrição”, defende a diretora-geral da ACT, Paula Johns. “Nossa ideia é disseminar esse conteúdo junto aos profissionais da área”.

Ela conta, aliás, que outro braço dessa parceria é um curso, já em andamento, sobre o livro, para pesquisadores do campo da nutrição.

Para a diretora da ACT, a obra representou um divisor de águas. “As coisas começaram a fazer mais sentido para mim”. Ela se refere ao papel esclarecedor que o livro teve em confusões que permeiam o tema. Paula cita como exemplo aquelas perguntas bem comuns, que de tempos em tempos mudam de respostas, por exemplo, o ovo é bom ou ruim para a saúde?

O editor da Elefante, Tadeu Breda, aposta que Scrinis trará surpresas para os leitores. “Vai abrir a cabeça de muita gente”. Na opinião do jornalista João Peres, um dos fundadores do site O Joio e o Trigo, a obra propõe uma ruptura profunda de paradigma, ao apresentar uma teoria que rompe com décadas de preocupação com proteínas, carboidratos e nutrientes.

“O acesso a esses produtos passou a ser uma aspiração para muitos, estabelecendo uma certa desigualdade alimentar, mesmo não sendo mais saudáveis que a comida comum”, avalia Peres.

O livro aborda isso de uma forma muito clara, sinaliza o jornalista. “Uma vez incorporada a ideia de que não precisamos ficar raciocinando em termos de nutrientes, comer volta a ser algo simples.”

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