Anti-herói

Livro Makunaimã e documentário Por Onde Anda Makunaíma? promovem revisão do mito que inspirou a obra-prima de Mário de Andrade

Por Nina Rahe
Publicado na Revista Select #50

 

Na ocasião da comemoração dos 90 anos do romance Macunaíma: o herói sem nenhum caráter, em 2018, Deborah Goldemberg foi convidada para dar uma palestra sobre a influência indígena na obra de Mário de Andrade. Em seu processo de pesquisa, a antropóloga deparou-se com o livro Do Roraima ao Orinoco – Observações de uma viagem pelo norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1911 a 1913, no qual o alemão Theodor Koch-Grünberg faz um levantamento etnográfico e linguístico dos povos indígenas da região, transcrevendo lendas e mitos de origem que depois inspirariam Mário de Andrade na construção de Macunaíma. Makunáima ou Makunaimã é a divindade indígena que habita o Monte Roraima, no extremo Norte do Brasil.

“De novo esse papo? Já disse que copiei mesmo, oras bolas! Disse até que me surpreende o fato de falarem que me restringi à cópia de Koch-Grünberg, quando copiei a todos […] Ai, que preguiça”, argumenta o personagem Mário de Andrade em Makunaimã: o mito através do tempo, antes de assumir o equívoco no título: “Curioso. O alemão, como se referem ao Theodor Koch-Grünberg, havia registrado uma grafia indicando o acento aberto no segundo ‘a’, por isso cometi esse deslize. Logo no título!”

Lançado em 2019, o livro Makunaimã é uma peça em dois atos de autoria coletiva, da qual Deborah Goldemberg faz parte. Sua dramaturgia reproduz o evento que a originou, uma palestra em comemoração dos 90 anos do livro Macunaíma, em que os herdeiros legítimos do mito, os povos Pemon, Taurepang, Wapichana e Macuxi reclamam a apropriação de Mário de Andrade. A diferença do evento, no entanto, está na presença do escritor modernista, que, na dramaturgia, desperta do Além e surge como quem estivesse apenas tirando uma soneca, pronto para ouvir – e aprender – com o que falam sobre ele.

“Se Mário tivesse ido até lá conversar com os povos, teria escrito outra história”, diz o personagem Laerte, um dos palestrantes. “Mas você está dizendo que Mário não poderia ter escrito Macunaíma? Isso me incomoda, porque é o livro da minha vida”, responde uma das participantes. “Estou dizendo que ele teria feito diferente. A forma como ele fez, deslocando fragmentos do nosso sagrado e misturando a outras coisas até se tornar algo que não significa nada pra gente, é um  xingamento − é um chamado de guerra!”, replica o primeiro.

 

RETORNO TARDIO

O livro lança mão de uma revisão histórica. “Descobri que a obra de Mário era inspirada no mito de Makunaimã, que é central, só que ninguém contou essa história pra gente e, mais que isso, Mário escreveu esse livro, que é considerado obra-prima da literatura brasileira, só que ninguém nunca voltou para os povos Taurepang, Makuxi, Wapichana para dizer que escreveu uma obra-prima inspirada no mito”, diz a antropóloga Deborah Goldemberg em conversa com Daniel Munduruku na live “Makunaimã Ontem e Hoje”, que ocorreu no fim de março. Para o evento em comemoração aos 90 anos da obra de Mário de Andrade, em 2018, esteve presente Avelino Taurepang, o neto de Akuli – o pajé Pemon que contou sobre Makunaímã para o etnólogo alemão. “É a maior reflexão acerca da Semana de Arte Moderna que faltava ser feita”, conclui Goldemberg no debate.

Esse retorno, apesar de tardio, parece ser o caminho proposto também no documentário Por Onde Anda Makunaíma?,  vencedor de Melhor Filme no Festival de Brasília de 2020. Se a peça realiza essa revisão por meio do humor, no filme, o diretor Rodrigo Séllos relembra o anti-herói de Mário de Andrade por suas passagens não só pela literatura, como também pelo cinema e o teatro, o que rende ao filme uma construção poético-imagética decorrente do mergulho nesse arquivo, mas mais que isso: em sua busca, Séllos recorre a depoimentos de indígenas para contar a história do mito, entre eles o artista Jaider Esbell, na tentativa de responder por onde andaria Macunaíma hoje, caso fosse revisto.

Se Mário teria feito diferente é algo que nunca saberemos com certeza. O que o livro e o documentário mostram, no entanto, é que as vozes indígenas precisam ser escutadas. “Esse tempo acabou. Agora estamos aqui, nós, os artistas indígenas, para contarmos nossas próprias histórias”, é o que vocifera Laerte em Makunaimã. A um ano do centenário da Semana de 22, essa é a renovação artística que cada vez mais se espera.

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