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Por Breno Castro Alves
@trocavales
Newsletter da Elefante

É inevitável: mesmo a leitora mais atenta sujará as mãos com margarina logo na primeira linha de Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional. Escrita pelo professor e pesquisador australiano Gyorgy Scrinis, a obra utiliza as gorduras processadas da margarina para desmontar o senso comum nutricional que a indústria e boa parte da mídia diuturnamente replicam.

Gyorgy baseia seu livro na elegante síntese do nutricionismo, conceito formado por nutrição + reducionismo e que “é caracterizado por uma ênfase redutiva na composição nutricional dos alimentos como forma de identificar o quanto eles são saudáveis, e por uma interpretação redutora do papel de tais nutrientes na saúde corporal. Uma das principais características é que, em alguns casos — e especialmente no caso da margarina —, se omitem ou se desconsideram as preocupações com a qualidade de produção e do processamento do alimento e de seus ingredientes”.

O autor demonstra como a ciência da nutrição, especialmente a visão nutricêntrica, falhou em acompanhar a voracidade com que a indústria de ultraprocessados degradou a qualidade dos alimentos em nome da massificação.

Remete aos químicos do século XIX que identificaram os macronutrientes carboidrato, proteína e gordura, conhecimento de que a indústria rapidamente se apropriou para reduziu seus produtos a essas categorias, deixando de lado a imensidade necessária para uma alimentação saudável, que começa na semente, passa pelas justas relações de trabalho, distribuição e preparo, e deságua na deliciosa comensalidade, o pão compartilhado com os seus. É a dimensão cultural da alimentação que, está provado, melhora a saúde. Chegaremos a ela.

O autor não tenta invalidar as informações valiosas que a ciência produziu sobre os nutrientes, os alimentos e o corpo, mas perceber que essas informações foram “frequentemente interpretadas de forma reducionista e traduzidas em diretrizes dietéticas igualmente reducionistas, em um processo de descontextualização, simplificação e exagero do papel dos nutrientes como determinantes da saúde corporal”.

Então voltamos à margarina. Lembre-se, seus dedos estão sujos da gordura espessa desde a primeira linha. Desde a sua invenção por um químico francês em fins do século XIX até os anos 1960, o público considerou a margarina, de maneira geral, uma imitação barata da manteiga.

No início dos anos 1960, porém, o cientista nutricional estadunidense Ancel Keys e seus colegas encontraram evidências de uma relação indireta entre gorduras saturadas e o aumento de doenças cardíacas. Elas aumentavam o colesterol no sangue.

Bastou essa constatação para a indústria alardear que a manteiga, rica em gorduras saturadas, como a maior parte dos animais, era vilã. Já a margarina é rica em gorduras trans e deve ser, portanto, mais saudável. Indicada, até.

Procede que a ligação da molécula de gordura é alterada no processo de fabricação da margarina, o que lhe dá a categoria trans. São principalmente formas artificiais de gordura vegetal, inventadas pela indústria em busca de padronização, de textura e de longa validade — ou seja, muita pesquisa para inventar produtos que bactérias e fungos não comem.

Amargamos até os anos 1990 sob este consenso, quando novo estudo finalmente comprovou como as gorduras trans são as piores entre todas, mais nocivas e perigosas do que as saturadas.

E o que a indústria fez? “Em vez de despertar para o questionamento da interpretação reducionista dos alimentos em termos de sua composição de gorduras e nutrientes, a controvérsia se converteu numa oportunidade para reforçar o paradigma”.

Hoje, temos margarinas livre de gordura trans. Para isso foram criados novos e absurdos processos industriais, que se chamam coisas como interesterificação, fracionamento e hidrogenação total, todas formas de reconstituir as gorduras presentes em óleos vegetais. Absolutamente não aprenderam a lição deste livro, apenas criaram formas mais eficientes de processar alimentos saudáveis. E partes da instituição científica e da mídia compram este discurso com sorriso no rosto.

Aqui, o Instituto do Coração de Lages registra campanha onde a Sociedade Brasileira de Cardiologia divulga seu Selo de Aprovação a uma marca de margarina, chegando ao absurdo de afirmar que o produto “como parte de uma alimentação saudável, auxilia na prevenção de doenças cardiovasculares” e também “é enriquecida com fitosteróis, substâncias que auxiliam na redução da absorção do colesterol”.

Escrevem isso sem ficar vermelhos e nem uma linha sobre o ultraprocessamento dos ingredientes. Reducionismo nutricional em estado bruto. Porém e ao mesmo tempo, nosso país produziu contribuições importantes para o campo. O autor destaca o professor Carlos Monteiro e sua equipe na Universidade de São Paulo, que introduziram o sistema de classificação NOVA, definindo a importante categoria de alimentos ultraprocessados.

Os mesmos estudos demonstram associação consistente entre o consumo destes alimentos e resultados negativos para a saúde. A pesquisa aponta conexões diretas entre os produtos, os impactos na saúde e as corporações que os projetam, fabricam em massa e, de forma agressiva, os distribuem e comercializam.

Além disso, o autor destaca esta maravilhosa segunda edição do Guia alimentar para a população brasileira, lançada pelo Ministério da Saúde em 2014, o que Gyorgy considera o primeiro documento de Estado que tira os nutrientes do centro de suas recomendações para se concentrar em promover alimentos e dietas tradicionais. O guia apresenta três orientações básicas: comer com regularidade e com atenção; comer em ambientes apropriados; e comer em companhia.

Originalmente publicado em 2013, este Nutricionismo aprofunda a mesma linha. O autor define um paradigma de qualidade para os alimentos onde valoriza a apreciação da sabedoria incorporada nos hábitos alimentares tradicionais, culturais, comprovando como o comensalismo gera saúde.

Demonstra também a crescente qualidade da comida em resposta a nosso próprio engajamento com seu cultivo, preparação e consumo. Em alimentação, como quase sempre, não há solução rápida. Este livro demonstra como a indústria dos ultraprocessados faz questão de não aprender essa lição.

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Lançamos este Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional em mais uma parceria desta casa editorial com o Joio e o Trigo, com o apoio da ACT Promoção da Saúde. O Joio e o Trigo é o único projeto brasileiro de jornalismo que investiga exclusivamente a alimentação e suas implicações políticas. São, também, nossos camaradas de longa data — as empresas e equipes são parceiras desde o começo dos trabalhos.

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