Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

Ferguson é uma cidadezica dos Estados Unidos que passaria amplamente desimportante para esta combativa editora que vos escreve não fosse a tempestade negra que teve lugar ali. Aconteceu em 2014 o assassinato de Michael Brown, morto pela polícia com bala nas costas, tragédia que catalisou o #BlackLivesMatters, ou #VidasNegrasImportam, hashtag antirracista que ainda ecoa pelo mundo.

Um dos resultados desse movimento é o livro #VidasNegrasImportam e libertação negra, que está em pré-venda pela Elefante. Escrito por Keeanga-Yamahtta Taylor, socióloga, professora de Princeton e ativista linha de frente, o livro é a versão brasileira de From #BlackLivesMatter to Black Liberation, lançado originalmente em 2016.

O nome Keeanga-Yamahtta Taylor nos foi assoprado por Silvia Federici, a autora do monumental Calibã e a bruxa — o livro desta desta casa que chegou mais longe, até aqui. Foi Silvia, no intervalo entre os eventos que realizamos para o lançamento de O ponto zero da revolução, em setembro de 2019, quem reforçou a nosso editor a importância do trabalho de Keeanga.

Ferguson é uma cidade que cresceu ao redor da última parada de trem antes de St. Louis, capital do conservador e agropecuário estado do Missouri. Um pouco de história: Fergusson proibiu moradores negros até os anos 1960 — os trabalhadores poderiam ficar até o pôr do sol; depois, deveriam sair, ou seriam multados, presos até. Essa política criou guetos e se reproduziu pelo país, um absurdo institucionalizado na autoproclamada “terra da liberdade”.

Historicamente falando, os anos 1960 foram anteontem. Então Ferguson partiu de 0% de negros anteontem para chegar aos mais de 65% hoje. Ou seja, a cidadezica supremacista branca enegreceu em duas gerações. A força policial, porém, tinha outro perfil: 95% de homens brancos em 2014.

Um deles era Darren Wilson, que assassinou o desarmado Michael Brown.

Fim do mundo. Imagine isso, uma dessas pessoas que é seu amor arrancada da vida sem justificativa possível e para sempre. Por mais horrível que seja, não foi suficiente para a força policial. Ainda acharam necessário demonstrar sua dominação e o lugar correto que cada um de nós deve ocupar no mundo.

O corpo de Michael restou no asfalto, ao sol do verão, por mais de quatro horas. Os pais estavam ali, todos já sabiam da morte e precisavam beijar, abraçar, entender, velar o filho morto, mas os soldados impediram, afastaram pai e mãe sob a mira de armas e da sanha de cães hostis com dentes à mostra.

O escritor Charles Pierce conseguiu descrever o que muitos sentiram: “Ditadores deixam corpos na rua. Déspotas mesquinhos deixam corpos na rua. Chefes militares em guerra deixam corpos na rua. Corpos são deixados na rua para dar uma lição, para provar um ponto”.

Poucas horas após o corpo de Brown ser finalmente removido, os moradores ergueram um memorial improvisado com ursinhos de pelúcia e outros objetos no local. A polícia chegou com os cães, que mijaram no memorial. Isso não é metáfora, os cães literalmente mijaram sobre o luto sagrado daquelas pessoas.

Uma viatura destruiu o memorial na mesma noite. No dia seguinte, amigos e familiares voltaram ao local e colocaram uma dúzia de rosas. Mais uma vez, um carro da polícia apareceu e destruiu as flores. Mais tarde, naquela noite, o levante começou.

Com tanques, metralhadoras e um suprimento interminável de gás lacrimogêneo, balas de borracha e cassetetes, o Departamento de Polícia de Ferguson declarou guerra aos residentes negros e a qualquer pessoa que se solidarizasse com a causa.

 

Racismo estrutural

Fomos fundo nesse caso específico porque a crueldade da polícia de Ferguson é sintoma de algo muito mais profundo nas veias de sociedades escravocratas, como a nossa e a deles. Para Brasil e Estados Unidos, o fim da escravidão representou uma nova fase do racismo estrutural. A ver um trecho da legislação do condado St. Landry Parish, ano de 1865, logo após a abolição naquele país:

“Fica também ordenado que todo negro deve ser empregado de uma pessoa branca, ou seu ex-proprietário, que será responsabilizado pela conduta do referido negro. […] Fica também ordenado que é dever de todo cidadão atuar como um policial, detectar infrações e apreender infratores, que devem ser imediatamente entregues ao capitão ou chefe da patrulha.”

De que forma isso não é escravidão? O sistema mudou para continuar o mesmo. Keeanga traz esse e mais uma profusão de exemplos para demonstrar as raízes que o racismo lançou sobre o Estado ianque — e, por reflexo, para o mundo inteiro. Já foi dito aqui que negros não puderam morar em Ferguson até os anos 1960, numa política que ficou conhecida como “sundown cities” [cidades pôr do sol], onde os negros poderiam trabalhar mas não morar.

Mas disso há inúmeros outros exemplos, e eles convergem para uma constatação: a dominação não é somente física como também econômica. As multas por comportamentos banais, como aqueles descritos na legislação de St. Landry Parish, representam parcela significativa da arrecadação de diversos municípios estadunidenses, e nós enviaremos um doce pelos correios junto com seu próximo livro se você adivinhar qual é a cor de pele das pessoas que foram e são sobretaxadas pelo Tio Sam e seus sobrinhos.

Em Ferguson, lá mesmo, as famílias negras eram a tal ponto inundadas com multas, taxas, encargos, intimações e prisões que em 2014 esses valores constituíam a segunda principal fonte de arrecadação do poder público municipal.

Temos nas mãos um livro que, para começar a conversa, comprova como os playboys brancos estão há séculos pilhando com ou sem sutileza as vidas e riquezas de nossos irmãos negros. Após essa abertura recheada de materialismo histórico, Keeanga analisa o impacto do primeiro presidente negro no racismo estrutural daquele país (spoiler: uma merda) e também desdobra o alcance do #BlackLivesMatter.

A historiadora Donna Murch sintetiza: “Não tenho palavras para expressar o que está acontecendo em Ferguson. Em nome de Michael Brown, uma bela tempestade negra contra a violência estatal está se formando, e tão densa que criou uma gravidade própria, atraindo pessoas de todo o país. […] As palavras que se repetem várias vezes são: militância, militância, militância. E esse movimento juvenil crescente tem toda a ternura ancestral do parentesco. Nas palavras de um ativista e artista de hip-hop local, ‘nossos avós estariam orgulhosos de nós’”.

 

E o Brasil?

Keeanga realiza um mergulho de fôlego nas minúcias daquela realidade terrível, e assim nos apresenta um grande espelho onde você, brasileiro, brasileira, imediatamente percebe: mas nossa polícia mata muitas vezes mais!

As polícias brasileiras assassinaram oficialmente 6.220 cidadãos em 2018, dos quais 75,4% (ou 4.689 pessoas) eram homens negros. Os números são do 13º Anuário da Violência, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aqui compartilhado via Alma Preta, portal de jornalismo livre que merece sua atenção. Em comparação, temos esse banco de dados do jornal The Washington Post relatando 229 negros assassinados nos Estados Unidos em 2018.

Chegamos ao final com esse número terrível: a polícia brasileira matou vinte e poucas vezes mais pessoas negras do que a ianque — e isso porque ainda nem normalizamos o número pelo tamanho da população.

Escolhemos fechar com Natália Neris, doutoranda na Faculdade de Direito da USP que há dez anos pesquisa as relações raciais no Brasil. O seguinte parágrafo, que ela deixou no prefácio à edição brasileira de #VidasNegrasImportam e libertação negra, conclui esta resenha jogando pra cima, em busca de caminhos para fora da tragédia brasileira:

“Keeanga mais uma vez me entusiasma num contexto desesperador, […] me ajuda a tensionar e manter um olhar crítico em relação a nossa aposta na institucionalidade, e a me lembrar que, no Brasil, principalmente nas suas margens, há resistência anticapitalista e antirracista solidária e projetada para a revolução. A leitura deste livro me faz projetar uma resistência afro-norte-centro-sul-americana-diaspórica, também. Keeanga nos convida a comunicar as urgências deste momento político.”

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