Descolonizar a escola, nova batalha de bell hooks

Inspirada em Paulo Freire, bell hooks propõe que a educação resgate também culturas populares e articule, em luta, a alegria, amor, cumplicidade e autorrealização dos hoje subalternos

Por Ednéia Gonçalves
Publicado no Outras Palavras | Prefácio de Ensinando comunidade

 

A obra de bell hooks ocupa especialíssimo espaço na formação ativista de muitas brasileiras, sobretudo as pretas, que, como eu, afetuosamente acessaram seus textos a partir das traduções e da circulação entre pares, décadas antes de sua aguardada publicação no país. Suas reflexões e seus estudos sobre raça, gênero e educação sacudiram ambientes acadêmicos e de militância negra e feminista, incitando diálogos potentes com o pensamento de intelectuais ativistas, como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, entre tantas outras que, em suas trajetórias, confrontaram a especificidade das experiências de racismo e sexismo vivenciadas pelas mulheres negras brasileiras com o alcance do ideal de justiça social tão central na face pública dos movimentos feminista e negro.

Em Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, bell hooks narra seu processo de formação acadêmica e identifica como epicentro de sua brilhante carreira a vivência como estudante de escola segregada onde professoras e professores alicerçaram o processo de ensino no fortalecimento da autoestima e na crença absoluta na capacidade de estudantes negros e negras construírem trajetórias acadêmicas com a excelência necessária para sustentá-los no confronto com o poder e com os efeitos do pensamento supremacista branco que enfrentariam ao longo de suas carreiras futuras.

Diante disso, a transformação da sala de aula em ambiente de afirmação da autoestima de jovens e crianças negras é central em sua experiência como educadora do ensino básico e superior e no desenvolvimento dos pilares de sua pedagogia engajada.

O exercício de transposição desse ponto de partida defendido por bell hooks para a realidade do Brasil encontra desafios similares e outros bastante específicos das relações raciais por aqui: de similar, destaco a necessária atenção à autoestima, à saúde mental e emocional de estudantes e profissionais da educação, em especial negras e negros cotidianamente submetidos à descrença de suas capacidades e ao descrédito em relação a seus conhecimentos e sua cultura ancestral. De específico, destaco a disseminação do mito da democracia racial que atua direta e fortemente no silenciamento dos efeitos do racismo institucional no estabelecimento de processos educativos qualificados em todos os níveis e para a totalidade dos estudantes.

Para nós, o reconhecimento das desigualdades raciais implica, sobretudo, a necessidade de ampliação de ações afirmativas que explicitem o comprometimento dos sistemas de ensino com a aprendizagem e o sucesso escolar e acadêmico de todos os estudantes. Esse processo de ampliação das políticas de Estado em prol das reparações históricas conta com um ator imprescindível, o Movimento Negro brasileiro.

É Nilma Lino Gomes quem define o Movimento Negro como “importante ator político, que constrói, sistematiza, articula saberes emancipatórios produzidos pela população negra ao longo da história social, política, cultural e educacional brasileira em prol da superação do racismo”1.

Apropriar-se da interpretação histórica das relações raciais desenvolvida pelo Movimento Negro brasileiro é essencial para a construção de uma proposta político-pedagógica comprometida com o direito de alunos e alunas vivenciarem trajetórias escolares ou acadêmicas de excelência.

Esse fundamento indica a educadores, educadoras e sistemas de ensino a urgência da disseminação de uma narrativa crítica da história do país que situe, na resistência negra e indígena às opressões, a concretização do ideal de nação cidadã e equitativa.

Em obras anteriores2, bell hooks orienta a construção de um ambiente educacional onde estudantes e professores, por meio da alegria, do amor, da cumplicidade e da autorrealização, articulam conhecimentos de diferentes procedências e nesse processo constroem aprendizagens significativas e transformadoras com repercussões ao longo de toda a vida. Essa defesa do ambiente escolar como espaço de inovação, descolonização de mentes e zelo pela integridade emocional de estudantes e professores se aprofunda nos dezesseis ensinamentos presentes em Ensinando comunidade: uma pedagogia da esperança, no qual bell hooks confronta duas visões de qualidade nas relações estabelecidas na sala de aula.

Por um lado, a autora apresenta a perspectiva que situa positivamente a representação das regras de dominação características do pensamento supremacista branco, capitalista e patriarcal. Essa sala de aula que se apresenta como um “microcosmo da cultura do dominador” concede ao professor ou à professora o poder autocrático de decisão quanto à relevância ou à insignificância de experiências de um conhecimento ou outro.

Diametralmente oposta a essa proposição, bell hooks situa e defende a educação como prática da liberdade e a sala de aula como ambiente de intensos questionamentos direcionados à formação do pensamento crítico e ao enfrentamento direto da naturalização da subordinação e da humilhação em relações baseadas na manutenção do poder. Essa sala de aula que se configura em espaço de pertença, cuidado mútuo e valorização das diferenças também possibilita a conexão da educação com um território que extrapola a formação acadêmica para encontrar na humanização e no amor a Pedagogia da esperança de Paulo Freire e nela assentar os fundamentos das comunidades educativas e de resistência: “A luta pela esperança significa a denúncia franca, sem meias-palavras, dos desmandos, das falcatruas, das omissões. Denunciando-os, despertamos nos outros e em nós a necessidade, mas o gosto também, da esperança”3.

Esperançar, para bell e Freire, é condição para o estabelecimento de comunidades educativas dispostas a reagir à violência das opressões vigentes em ambientes estruturalmente hostis à liberdade de expressão e a questionamentos das relações verticalizadas que as sustentam. É justamente nesse ponto que os ensinamentos encontram o desejo de ser feliz em sala de aula vivenciando a troca e o afeto mútuo: bell hooks não romantiza sua trajetória de professora progressista e intelectual negra; muito pelo contrário, apresenta os desafios contidos na experiência de desenvolver uma prática de ensino fundada no diálogo crítico, no antirracismo e feminismo, concebida em ambientes historicamente favorecidos pelos sistemas de opressão que ela denuncia e combate de maneira sistemática.

No oitavo ensinamento deste Ensinando comunidade, “Superando a vergonha”, bell hooks alerta para os sentimentos e as percepções potencialmente destrutivas da continuidade do sucesso acadêmico de estudantes que apresentavam qualidades evidentes em suas comunidades no ensino médio, mas que se viram invisibilizados ou humilhados no ensino superior:

Tomamos conhecimento de estudantes negros que apresentam desempenho aquém de suas habilidades. Ouvimos dizer que eles são indiferentes, preguiçosos, vítimas que querem usar o sistema para ganhar algo sem precisar retribuir. Mas não tomamos conhecimento das políticas de vergonha e de humilhação. (p. 157)

Nos ensinamentos da autora, o estabelecimento de comunidades de resistência, que por meio do exercício do mutualismo praticam acolhimento e proporcionam pertencimento, é essencial para a sustentação da capacidade de cultivar esperança, afeto e reconhecimento de um sentido comum na experiência de formação acadêmica de estudantes negras, negros e lgbtqia+. Na falta delas, o aumento dos casos de suicídio de estudantes negros nas universidades públicas brasileiras demonstra que o enfrentamento ao racismo, quando solitariamente vivido, configura-se em campo minado para a saúde mental e porta aberta para o risco de humilhação, desonra e finalmente interrupção das possibilidades de autorrealização, desenvolvimento coletivo e sobrevivência.

É possível construir essa comunidade de resistência que aproxima estudantes, professores e gestores dos diferentes sistemas de ensino que constituem a formação acadêmica; porém essa rede é insuficiente para a proteção social e emocional que garante à totalidade de estudantes negras e negros vidas maiores que sobrevidas no cotidiano das exigências da produção acadêmica. É preciso uma comunidade mais conectada que promova a aproximação mais profunda entre estudantes e professores com o mundo além da academia, pois é nesse mundo que reside o sentido de coletividade que sustenta o engajamento como possibilidade para o enfrentamento ao racismo e a disposição para “trocas dialéticas” nas salas de aula.

A rede de sustentação das microrresistências diárias ao racismo e ao sexismo reafirmada em Ensinando comunidade é composta por pessoas e situações que envolvem família, amor, sexualidade, espiritualidade, professoras dedicadas a fortalecer a autoestima e estudantes que desafiam o status quo. Essa rede é convocada também para o acolhimento dos que sucumbem à humilhação e o enfrentamento daqueles e daquelas dedicados à desonra de estudantes negras e negros.

Ainda no oitavo ensinamento, bell hooks nos conta que, no ambiente segregado onde iniciou sua escolarização, era considerada boa escritora, e isso era natural; nos ambientes escolares brancos, conviveu, perplexa, com questionamentos acerca da autoria de seus textos bem escritos. Em vários ensinamentos contidos nesta publicação, me reconheci como educadora, e em muitos outros momentos o fio da memória da estudante preta foi puxado. Nesse caso, especificamente, revivi a surpresa e a irritação de minha primeira professora de literatura ao descobrir que eu já havia lido todos os livros que ela tentara me indicar, logo eu, a estudante preta, filha da servente escolar e do restaurador de livros. Meus conhecimentos nunca foram reconhecidos ou valorizados nas aulas de literatura, mas sorrateiramente participei da formação daquela primeira comunidade de resistência leitora, forjada por meus amigos da quinta série, dialogando sobre personagens e sugerindo novos desfechos para as histórias pouco animadoras impostas e nunca discutidas em sala de aula.

Em Letramentos de reexistência4, a pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza alerta para o necessário reconhecimento dos estudantes como portadores de conhecimentos complexos e importantes para a qualificação dos processos de escolarização que se estabelecem a partir da apropriação, por parte da escola, das práticas de uso da linguagem em circulação nos territórios ativistas e no cotidiano de resistência às várias camadas de exclusão, racismo e discriminação enfrentadas por crianças e jovens pretos e pretas no Brasil.

Ensinando comunidade reensina o esperançar de Paulo Freire e nos convoca a praticar a pedagogia desassossegada que constrói aulas perfeitas, descritas por bell hooks como um improviso de jazz, momentos únicos em que todos estão presentes por inteiro e no agora.

 

1 GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017, p. 24.

2 Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2ª ed. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017; Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Trad. Bhuvi Libanio. São Paulo: Elefante, 2020.

3 FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. 11ª ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015, p. 215.

4 SOUZA, Ana Lúcia Silva. Letramentos de reexistência — poesia, grafite, música: hip-hop. São Paulo: Parábola, 2011.

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