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É preciso guaranizar a política

Em pré-venda, A esquiva do xondaro responde à necessidade de refundar a política, ou ao menos repensá-la. Dançar a política pode ser uma via para resistir ao fascismo que se apoderou do Brasil.

Os Guarani Mbya indicaram ao antropólogo Lucas Keese dos Santos que a chave para compreender a sua política está nos movimentos de uma dança, ou dança-luta, que eles chamam de dança dos xondaro (xondaro jeroky), composta por movimentos de esquiva, de “fazer errar” (-jeavy uka) o adversário – um ponto de encontro com a capoeira, já que ambos têm na esquiva uma característica central. Não é por acaso: xondaro e capoeira são danças-lutas forjadas por populações com longa história de subjugação, que precisaram aprender a se esquivar para seguir existindo.

Essa é uma das principais teses de A esquiva do xondaro: movimento e ação política guarani mbya: a associação entre o movimento de esquiva na dança e o ato de enganar, particularmente tematizado em narrativas míticas. O ato de enganar — fazer-se passar por outrem — é uma operação privilegiada nas cosmologias ameríndias; caçadores, por exemplo, enganam os animais de caça, fazendo-se passar por eles. A ela, une-se a desconstrução da imagem do suposto pacifismo dos Guarani atuais, a ideia de que eles teriam desistido das guerras — entre si e com outros povos — para sucumbirem ao “amor” apresentado pelos missionários cristãos. Keese dos Santos refuta esse estado de passividade e ressalta a capacidade demonstrada pelos Guarani Mbya em transformar, ao seu próprio modo, elementos exógenos adquiridos pela experiência.

“Sabemos que os Guarani Mbya resistem ao mundo jurua há mais de quinhentos anos. Mantiveram sua língua e seu modo de existência (nhandereko), ainda que vivendo em situações de confinamento, em territórios pequenos e próximos a cidades, isso sem falar das tantas ameaças recebidas de proprietários de terras e mesmo do poder público. Isso os conduziu ao aperfeiçoamento da arte da esquiva. Se por muito tempo eles optaram por se fazer imperceptíveis, nas últimas décadas, sobretudo depois da promulgação da Constituição de 1988, buscam tornar cada vez mais visíveis as suas reivindicações, sobretudo aquelas associadas ao direito à terra. Isso implicou codificar seu modo de existência (nhandereko) em termos de ‘cultura’ e estreitar alianças com parceiros jurua, trazendo-os para a sua luta”, pontua Renato Sztutman, professor do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios, no prefácio do livro.

Os Guarani Mbya teriam aperfeiçoado essa arte de “fazer errar”, utilizando o movimento de seus inimigos contra eles mesmos, em vez de investir no confronto direto. Essa se tornou a marca de sua resistência ao mundo dos jurua. Foi fazendo-os errar que eles conseguiram resistir até hoje. A esquiva seria o modo privilegiado de os Guarani fazerem a guerra — e também a política. Citando Sztutman, “diante da imensa crise política em que nos vemos mergulhados, o autor prefere perguntar aos Guarani Mbya, com quem convive há muitos anos, o que poderia ser a política. E a primeira resposta deles seria que, em vez de buscá-la nas disputas por uma posição estável de poder e soberania, mais valeria investigar mecanismos capazes de conjurar modos de coerção e subordinação.”

Por meio do xondaro jeroky, Keese dos Santos reencontra a política, termo de difícil tradução para a língua guarani, mas que encontra significados como “política é movimento, movimentar-se (mongu’e)”, o que novamente conduz à dança. A esquiva do xondaro responde, assim, à necessidade de refundar a política, ou ao menos repensá-la. O livro aponta caminhos para guaranizar a política em tempos que, segundo Sztutman, “dançar a política pode ser uma via para resistir ao fascismo que se apoderou do Brasil depois de 2016, para resistir ao baque da pandemia de covid-19 — também indissociável desse e de outros fascismos —, que atestou a insuficiência de nossos modos de cuidado em relação ao meio ambiente e aos corpos que o habitam”.

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