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Por Bruna Maia
Publicado em O Globo

 

Existe maneira delicada de falar sobre algo tão hediondo como a violência sexual? Muitos diriam que delicadeza é fundamental já que as vítimas, em geral, estão fragilizadas e a abordagem tem que ser acolhedora. É um argumento justo, mas as narrativas cuidadosas não dão conta de materializar o quão brutal é ser abusada.

Em Por que você voltava todo verão?, da argentina Belén López Peiró, toda barbaridade que envolve essa situação é cuspida na cara do leitor. Não há meias palavras ou eufemismos, ali está a história de um abuso real narrada de forma ríspida, direta, crua e rápida: o livro pode ser lido em uma hora, ainda que precise de mais tempo para ser digerido.

Peiró conta como um tio, em cuja casa passava os verões, a submeteu à violência sexual entre os 13 e os 16 anos, ao mesmo tempo em que narra como foi o processo judicial que moveu contra ele. Mas ela não se limita à própria perspectiva dos fatos. Cada capítulo traz diferentes membros da sua família: a mãe que se sente culpada, a prima que não acredita no que ela diz, a tia que até acredita, mas não vai tomar atitude. Entre os desabafos, a autora insere peças judiciais que ajudam a compreender os trâmites de casos assim.

O que impressiona é que um livro de apenas 114 páginas compostas de frases breves e ásperas dê conta de abarcar o sofrimento pelos quais mulheres que sofremos violência sexual e decidimos denunciar os perpetradores passamos. Estão ali a confusão mental que é ser violada por uma figura de afeto e cuidado, o descrédito de parte dos familiares, a provação que é reviver momentos tão dolorosos na delegacia e no tribunal, o despreparo das instituições na hora de amparar as vítimas.

Peiró expõe as consequências em sua vida. Uma criança animada e alegre se tornou uma adolescente depressiva e taciturna. Sua sexualidade ficou marcada, e é difícil aproveitar os momentos íntimos com o namorado. Dá para sentir o asco na boca ao perceber que a vida do abusador seguia, alheia aos danos que provocou, até ela denunciá-lo.

Uma pesquisa do IBGE divulgada em maio apontou que 8,9% das brasileiras já sofreram violência sexual. Considerando que a sociedade estimula o silenciamento das vítimas, a porcentagem deve ser maior. Quase todas as minhas amigas e eu mesma temos histórias horrendas. Por isso, muitas mulheres se identificarão com a narrativa e, talvez, não se surpreendam com as palavras da autora.

Peiró escreve com raiva, um sentimento tão justo e reprimido nas mulheres. Quando nos abusam, empurram-nos goela abaixo também a culpa e a vergonha. Presenciar um relato tão furioso lava a alma de quem viveu esse tipo de horror e não pode nem gritar.

Para muitos homens, contudo, o livro é absolutamente necessário porque tudo que está escrito ali vai ser uma novidade bem desconfortável. Afinal, é raríssimo uma vítima de abuso se expressar com tanta clareza. Se o leitor, depois de ser esmurrado pelos golpes verbais de Peiró, não sentir empatia pelas mulheres, nada mais pode salvá-lo — talvez porque seja ele mesmo um abusador. E aí, como é ser abusada?

 

Bruna Maia é cartunista e roteirista, autora do livro Parece que piorou (Companhia das Letras, 2020) e da página de quadrinhos Estarmorta

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