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Por André Santa Rosa
Publicado no Suplemento Pernambuco

 

“Em tempos de mutação, há que ficar perto dos artistas”, escrevera a professora Lúcia Santaella, em seu Cultura e artes do pós-humano (2003). Vivemos um tempo em que a palavra mutação é um signo em dois sentidos. Primeiramente, um vírus terrível sempre se modificando em novas cepas mais perigosas e contagiosas. Mas, também, metáfora para as mutações e torções das experiências artísticas e comunicacionais no digital, que tangenciam todo acontecimento da pandemia em si.

O ecrã (ou tela) e suas implicações, ou melhor, suas “remediações”, é o que preocupa João Pedro Cachopo em seu novo livro, A torção dos sentidos (Editora Elefante). O musicólogo lusitano, filósofo e professor da Universidade de Lisboa, se debruça sobre a hipótese e provocação de que “a pandemia não é o acontecimento em si”, e sim toda “remediação” da nossa experiência com a comunicação, a nossa imaginação e as artes. O livro segue uma estrutura em dois tempos: o primeiro, uma visita crítica aos textos pandêmicos de pensadores como Giorgio Agamben, Byung-Chul Han, Slavoj Žižek, entre outros; o segundo momento é voltado a tópicos específicos como arte, comunidade, estudo, amor e viagem.

Em entrevista ao Pernambuco, João Pedro Cachopo fala sobre temas que trata no livro: a produção filosófica feita na pandemia, a experiência remediada da arte e como pandemia e revolução digital dialogam.

 

Você traz no prólogo do livro a provocação de que “a pandemia não é o acontecimento”. A formulação, à primeira vista, parece negar o protagonismo da pandemia como grande catástrofe global, mas, na verdade, busca ressaltar todas as problemáticas que tangenciam o vírus em si. De que forma o livro nasce dessa provocação e quais possíveis leituras para frase?

A ideia de que a pandemia não é o acontecimento é realmente uma provocação. Mas não é uma provocação gratuita. Compreender aonde quero chegar com ela é decisivo para entender o livro. Por um lado, a expressão sublinha que há um acontecimento. Pensando nas últimas décadas, a pandemia por covid-19 só é comparável, em termos de relevância global, com o atentado do 11 de Setembro em 2001 e a queda do muro de Berlim em 1989. Mas, tal como esses episódios remetem para acontecimentos mais vastos — a queda do muro de Berlim para o fim da Guerra Fria e o 11 de Setembro para o fim de uma certa ordem global aparentemente pacificada sob o domínio norte-americano —, assim também a pandemia remete para transformações que não coincidem imediatamente com ela.

Defendo, neste livro, que essas transformações dizem respeito à revolução digital ou, para ser mais preciso, ao impacto cada vez maior das tecnologias digitais sobre as nossas vidas. Não me refiro apenas às coisas práticas do quotidiano (fazer compras pela internet, usar aplicações pelo celular, trocar mensagens pelo WhatsApp), mas também à vida mental e afectiva. A nossa consciência do espaço e do tempo, o modo como entendemos o aqui e o agora, ou o que significa a proximidade e a distância, tudo isso se está transformando radicalmente. Por isso digo que há um acontecimento, mas que esse acontecimento não é a pandemia em si mesma. Ele consiste na “torção dos sentidos” que a revolução digital, acelerada pela pandemia, provocou. Outra forma de expressar essa ideia é dizer que a pandemia não é apenas viral, mas também digital e que essa “pandemia digital” já tinha começado antes de 2020 e se aprofundará ao longo das próximas décadas.


O livro parece ter uma clara divisão em dois tempos. Tratando do primeiro momento do livro, a filosofia — mas também as artes — sempre sofre muito impacto em momentos cruciais para humanidade como esse. Como você entende a tônica desses textos feitos no calor do momento, ainda em abril de 2020?

Os primeiros meses da pandemia foram realmente marcados por uma avalanche de textos filosóficos. Não houve filósofo que não escrevesse um texto sobre a pandemia. Acompanhei esses debates o melhor que pude e vejo essa efervescência filosófica como positiva. Reconheço-me na visão de Foucault para quem a “ontologia do presente” é uma tarefa central da filosofia. Dito isto, importa acrescentar que estes textos tiveram características muito distintas e que nenhum deles me convenceu totalmente, muito pelo contrário…

Eu dividiria os intervenientes no “caso pandemia” em três grupos. O primeiro, mais pessimista, viu na pandemia o pretexto para uma intensificação do poder estatal e biopolítico (foram nesse sentido os textos de Agamben e Byung-Chul Han). O segundo, mais optimista, interpretou a pandemia como prelúdio para uma tomada de consciência política ou ecológica (foi o que fizeram Žižek e Latour, por exemplo). Por fim, e em larga medida por reação aos dois primeiros grupos, autores como Badiou e Rancière desvalorizaram o significado histórico e político da pandemia (sem, como é óbvio, negar a sua gravidade). Ora, apesar de não me identificar nem com os autores mais pessimistas nem com os autores mais optimistas, estou convencido de que a pandemia constitui um marco na história contemporânea.

Daí que o livro pareça ter — e eu concordo com essa leitura — dois momentos: o do confronto com os textos pandémicos e o do desenvolvimento da minha própria hipótese: a hipótese de que o verdadeiro acontecimento consiste na torção dos sentidos pelos quais nos reconhecemos próximos ou distantes de tudo o que nos rodeia. É porque esse reconhecimento do próximo e do distante intervém sempre que viajamos, amamos, estudamos, experienciamos arte ou imaginamos o comum que o segundo momento do livro termina com uma exploração desses cinco campos. A verdade é que esse quinto capítulo é também o mais pessoal. É nele, talvez, que o calor do momento se deixa reconhecer.

Para pensar as disputas simbólicas e discursivas no campo da análise crítica e filosófica, você sistematiza dois grupos: os apocalípticos e os remediados, em uma referência a Apocalípticos e integrados, de Umberto Eco. O que separa essas duas linhas de análise?

A distinção entre “apocalípticos” e “remediados” desempenha um papel decisivo no momento em que o livro se transforma numa reflexão sobre a revolução digital. Nessa reflexão, parece-me fundamental evitar dois extremos: o da tecnofobia dos “apocalípticos” e o da tecnofilia dos “remediados”. A tecnologia não é nem a origem de todos os males nem a solução para todos eles. Não é nem nunca foi! Mas esse maniqueísmo está hoje muito presente. E é para combatê-lo que retorno a Umberto Eco.

Também para Eco, quando escreve Apocalípticos e integrados nos anos 1960, estava em causa recusar as duas posturas. Se os integrados pecavam por ingenuidade no seu entusiasmo pelo admirável mundo dos novos meios de comunicação da época, os apocalípticos, criticando os primeiros de forma conservadora, defendendo a arte erudita contra a invasão da cultural de massas, pecavam por elitismo. Esta dupla recusa é hoje pertinente quando a crítica da tecnologia digital se confunde com a desconfiança diante do novo e a nostalgia pelo passado. Por outras palavras, uma coisa é reconhecer os perigos da revolução digital, que estão bem patentes no fenómeno das fake news, no potencial manipulador do algoritmo ou na capacidade de vigilância das plataformas digitais. Outra coisa seria acusar a tecnologia digital de ser a causa de todos os males do presente: da perda da presença, da virtualização das relações, do esquecimento do ser, e assim por diante…

A esse respeito eu acrescentaria dois pontos. Primeiro, que não há como voltar atrás: hoje, em 2021, é tão absurdo pretender um retorno a um modo de vida pré-digital, como era no tempo de Marx pretender um retorno a um modo de vida pré-industrial. Segundo, que a nossa crítica da revolução digital será tanto mais incisiva quanto soubermos nos livrar dos traços de conservadorismo e de ingenuidade que por vezes a acompanham.


A palavra “remediação” é muito cara ao livro. Quando você trata de arte, fala de “experiência remediada” e “experiência plena”. Mas ela também está completamente ligada à tal “torção de sentidos” do título, que envolve muitas outras áreas. Quais as leituras para o conceito de remediação e sua relação com esse deslocamento, fratura e torção dos sentidos contemporâneos?

O conceito de remediação desempenha um duplo papel no livro. Por um lado, uso o termo de forma genérica no sentido de “remédio”, “reparo”, “remendo”. Por outro lado, uso-o em sentido técnico. Remediação, nesse segundo sentido (que foi introduzido por Bolter e Grusin em Remediation: Understanding new media, de 1999), remete para o próprio funcionamento das tecnologias digitais que, assentes na permutabilidade do código binário, permitem que qualquer medium [meio de comunicação] seja transposto para outro medium. Nesta acepção, o conceito de remediação serve de emblema à própria revolução digital. Se Walter Benjamin reflectiu sobre a obra de arte na época da sua reprodução técnica, hoje podemos e devemos reflectir sobre a obra de arte — e não só sobre a obra de arte — na era da sua remediação digital.

Ora, durante a pandemia, os dois sentidos confundiram-se. Isso aconteceu sempre que as pessoas recorreram a tecnologias de remediação digital para remediar o facto de que as suas experiências presenciais haviam sido suspensas. A ideia de que as tecnologias digitais serviriam de remédio para a distância física é um equívoco: nada substitui a experiência presencial, seja na arte, na viagem ou no amor. Mas tal não significa que a experiência remediada seja uma ameaça para a experiência presencial ou que promova inautenticidade. Daí a importância — voltando de algum modo à resposta anterior — de recusar ao mesmo tempo as perspectivas do “remediado” e do “apocalíptico”. É tão ingénuo achar que a tecnologia substitui a presença física como separar de forma maniqueísta experiência presencial e experiência remediada.

Quando todos os aparelhos culturais fecharam por conta da pandemia, a presença virtual se fez de súbito: filmes, concertos e shows de forma gratuita e online. A experiência com a literatura foi afetada pelo fechamento de livrarias, mas acredito que a fruição da arte em si, não. Contudo, a performance e o teatro foram as linguagens que sofreram de forma mais pesada, por conta do paradigma de não serem obras feitas para o registro. São frutos do efêmero. Qual foi o lugar da arte e da ideia de presença na pandemia?

A efemeridade está presente em todas as artes. Todas emergem no tempo, todas sofrem o seu desgaste. Mas é verdade que as artes performativas, como a música, o teatro, a dança e a ópera, foram especialmente afectadas pela pandemia, devido ao encerramento de salas de espectáculo. Como sabemos, esse retraimento de eventos ao vivo foi acompanhado por uma explosão de eventos online — as famosas lives. Isso gerou uma reacção defensiva, como se a arte estivesse sob ameaça não apenas da pandemia mas também dos novos media [meios de comunicação].

A meu ver, duas coisas são importantes neste contexto. Uma é reconhecer a gravidade da crise que se abateu sobre o sector cultural: as limitações à reunião de pessoas em espaços fechados, incluindo teatros e salas de concerto, mas também museus, galerias, livrarias, salas de cinema, teve consequências extremamente negativas para as instituições culturais e para as pessoas que trabalham nelas. No entanto, são as condições da criação artística e da experiência estética que estão ameaçadas — não a essência das artes! Primeiro, porque não há tal coisa — a essência das artes — independentemente da história, da sociedade e da técnica. Segundo, porque, pensando em técnica em sentido moderno — em relação com tecnologias de reprodução do som e da imagem —, há mais de um século que estas transformaram o que entendemos por arte, assim como o diálogo entre as artes e a relação entre arte e vida.

Não é claro para mim que conceitos como os de “presença” ou “ao vivo” possam definir as artes performativas. Diria, pelo contrário, que cada vez mais as artes se expandem num sentido incompatível com essas divisórias: entre presença e ausência, ao vivo e gravação, palco e ecrã. Assistir a um espectáculo ao vivo é diferente de assistir a um espectáculo gravado — sem dúvida. Mas, mesmo num espectáculo ao vivo, cada vez mais surgem elementos gravados, vídeos, filmagem em directo que confundem a própria definição de arte performativa. Um espectáculo recente de Marina Abramovic, Seven deaths of Maria Callas, é um bom exemplo disto. A artista está presente no palco, mas aparece também nos vídeos que o espectáculo inclui. A “Marina Abramovic que aparece no ecrã” faz menos parte do espectáculo do que a “Marina Abramovic que actua em palco”? Faz sequer sentido estabelecer esta distinção? Não creio…

Por tudo isso, em relação às transformações no campo das artes, estou convencido de que a pandemia veio simplesmente acelerar um processo de hibridização que já estava em curso e que é, pelo menos em potência, extremamente enriquecedor.

Por fim, uma passagem muito interessante em A torção dos sentidos é quando, citando Bruno Latour, você comenta que a primeira “lição” da pandemia foi mostrar como um sistema capitalista defendido como imutável e desenfreado teve, entre março e abril de 2020, profundas modificações em suas dinâmicas no mundo todo. O que fica de novos paradigmas para o capitalismo e para o trabalho nesse pós-pandemia?

Latour pôs a tónica neste espanto. Subitamente, em março e abril de 2020, a engrenagem do capitalismo abrandava. Não parava… Mas travava de forma brusca. Sabemos que um dos argumentos a favor do status quo capitalista é o de que não há alternativa. Mark Fisher deu um nome a essa maneira de pensar: chamou-lhe “realismo capitalista”. Ora, para Latour, as primeiras semanas da pandemia permitiram reconhecer essa maneira de pensar por aquilo que é — mera ideologia. Apesar da travagem, o sistema não colapsou. Desacelerar o sistema de produção é então possível. É por isso — por Latour defender que a pandemia permitiu reconhecer outros possíveis — que considero a sua interpretação inicial da pandemia optimista. Pessoalmente, concordo em absoluto com o espírito do argumento de Fisher: a dificuldade de transformação decorre de um bloqueio, não da realidade, mas da imaginação. Mas nem por isso convirjo por completo com o optimismo de Latour. Percebo a importância de sublinhar que uma mudança radical é possível. Mas acredito que a radicalidade pode e deve começar enquanto diagnóstico do presente e não como prognóstico do futuro.

Há dias vi uma conversa entre Žižek e [Yanis] Varoufakis [economista, foi ministro das Finanças da Grécia em 2015, ano politicamente agitado naquele país] em que o segundo se questiona sobre se não vivemos já para além do capitalismo. Não no sentido de o capitalismo ter dado lugar a um sistema melhor, mas, muito pelo contrário, no sentido de uma mudança para pior, em que coexistem avanço tecnológico e retrocesso social. Varoufakis fala em “tecnofeudalismo”. Compram-se e vendem-se mercadorias como sempre no capitalismo. E continua a haver quem controle os meios de produção. Mas os meios de exposição do que há para comprar e para vender estão nas mãos de meia dúzia de empresas em todo o mundo: Facebook, Google, Amazon… São eles os novos senhores feudais da economia global. Varoufakis retoma, à sua maneira, debates que outros têm promovido. Para dar apenas um exemplo, Shoshana Zuboff, em A era do capitalismo de vigilância (2019), reflecte justamente sobre a concentração de poder nestas empresas. Mas, ao acentuar que estas mutações nos convidam a abandonar a própria noção de capitalismo, Varoufakis permite reconhecer o tal bloqueio da imaginação que importa superar.

Mas há um outro aspecto com o qual gostaria de terminar. As consequências para a vida do sujeito são imensas. É também a relação entre esfera privada e o mundo do trabalho que está colapsando. Vende-se uma imagem de si. Esta imagem já não é apenas a projectada por alguém que vai a uma entrevista de trabalho e se comporta de determinada maneira, fala de certa forma e usa esta ou aquela roupa. É também a imagem que emana das redes sociais — que o potencial empregador vai procurar antes ou depois da entrevista. Isto gera um modo de vida — marcado por lógicas de autocensura, de autopromoção, de autocontrolo — com as características de uma nova servidão. Como evitar isto? Não sei. Mas estou convencido de que a resposta não pode passar por um mero recuo. É preciso reimaginar as formas de emancipação, quer à escala individual quer à escala colectiva, no terreno movediço que é o digital, sob as condições históricas, políticas e tecnológicas que são as do nosso tempo.

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