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Por Kena Azevedo Chaves
Publicado no Boletim Campineiro de Geografia

 

Nesta entrevista, realizada pela geógrafa Kena Azevedo Chaves em 23 de abril de 2021 pela Internet, Verónica Gago aborda, entre outros temas, tópicos discutidos em seus livros A potência feminista, ou desejo de transformar tudo e Uma leitura feminista da dívida, este em coautoria com Luci Cavallero, e reflete sobre as relações possíveis entre reprodução social e povos indígenas, criando pontes com a pesquisa da entrevistadora. A conversa buscou tocar pontos atuais do debate feminista, trazendo reflexões sobre a crise da reprodução social intensificada pela pandemia, sobre a politização do trabalho nos territórios domésticos e sobre a noção de corpo-território.

 

KENA CHAVES: A pandemia “parou o mundo”, muitos espaços da produção foram desacelerados. Em contrapartida, a reprodução não parou e pesquisas indicam maior sobrecarga de trabalho sobre as mulheres. Como pensar a pandemia através de uma perspectiva feminista?

VERÓNICA GAGO: Desde o início da pandemia estamos refletindo e escrevendo, sobretudo em colaboração com Luci Cavallero, sobre como os feminismos têm acumulado um conjunto de vocabulários, práticas e ferramentas políticas que visibilizaram, nos últimos anos, questões chave, como por exemplo: o trabalho reprodutivo e o trabalho doméstico; as tarefas de cuidados; as relações de gênero associadas a esses cuidados; problematizamos os significados do trabalho comunitário territorial numa perspectiva política; e os significados da violência doméstica nos lares altamente precarizados… Há uma série de questões que vínhamos trabalhando muito fortemente em uma dimensão política, com relação à greve feminista, e também em uma dimensão teórica, relacionando e aprofundando os debates históricos dos feminismos. Acreditamos que nesse contexto de pandemia tudo isso foi ratificado e, por outro lado, foi multiplicado e intensificado. Todos esses problemas que vínhamos iluminando e assinalando, que vínhamos confrontando, ficaram evidentes e se intensificaram. Ao mesmo tempo, é um valor importante ter todo esse arsenal teórico e político que vínhamos desenvolvendo nos  feminismos, para ler o que está acontecendo nesse momento de pandemia, para visibilizar e valorizar quais são as redes que efetivamente estão colocando o corpo nas linhas de frente, e também para mapear os conflitos que estão se agudizando nesse momento. Pensemos nos projetos mega-extrativistas, por exemplo, que estão numa fase de aceleração brutal e aproveitamento da situação de crise pandêmica para incrementar sua dinâmica violenta sobre os territórios. Pensemos também na super exploração do trabalho doméstico, que hoje está sendo a infraestrutura concreta que enfrenta as crises de emergência habitacional, emergência de saúde e sanitária, nos distintos territórios. Estamos diante dessa ambivalência. Por um lado, se confirma, se ratifica e se constata uma série de hipóteses e discussões que vínhamos desenvolvendo no movimento feminista, relacionadas, sobretudo, a uma leitura feminista do trabalho precarizado e a um entendimento do território e das geografias, vinculadas também a uma perspectiva feminista. Também construímos maneiras de visibilizar e valorizar as redes políticas que estão produzindo cidades, produzindo territórios e sustentando a reprodução social das maiorias. Tudo isso se confirma e se constata, porque dispomos de toda essa maneira de pensar e de visibilizar essas situações.

Evidenciamos a partir de nossas lutas esse funcionamento concreto, e hoje isso aparece em uma situação super dramática, por que vemos a aceleração da guerra e do ataque contra certos corpos e certos territórios. Por outro lado, muitas dinâmicas feministas que estávamos impulsionando em espaços que estão ligados às ruas e ao espaço público, que são o lugar do encontro privilegiado, hoje estão restritas por conta da pandemia. Para gerenciar a crise, querem nos encerrar de volta em espaços privados. Nesse contexto, para não sermos expulsas dos lugares dos quais vínhamos fazendo política, se faz ainda mais importante, e também mais difícil, reinventar esses espaços coletivos e comunitários a partir de uma perspectiva feminista.

 

KC: Em alguns trabalhos você discute novas formas de extração do valor que avançam sobre as atividades de reprodução, historicamente marginalizadas e desvalorizadas pelo capital. Admitir a possibilidade de extração do valor da esfera da reprodução social pressupõe um novo entendimento sobre a produção do valor?

VERÓNICA GAGO: Essa é uma discussão que o feminismo constrói desde os anos 1970, pelo menos, e, nesse sentido, eu me inscrevo nos debates aprofundados e analisados por Silvia Federici, e também pelos grupos que, nesse mesmo período, fizeram toda uma campanha teórica e política pela reivindicação do trabalho doméstico como trabalho que produz valor. O desconhecimento e a desvalorização desse trabalho como produtor de valor têm uma função política, que é o domínio e a exploração de certos corpos. Acredito que atualmente essa compreensão está também em processo de ampliação, por exemplo, por meio de cruzamentos com os debates do feminismo negro, que foram ampliando a imagem e a ideia de quem são essas trabalhadoras, para além da imagem da dona de casa, colocando outras figuras e outras realidades para pensarmos.

Entendo que a partir da América Latina as realidades das economias populares, que eu particularmente tenho trabalhado e investigado, também trazem uma imagem muito concreta de como podemos pensar o trabalho doméstico. O que estou tratando de assinalar é que estamos falando de territórios domésticos, que tem a ver com os lares, mas que também excedem as fronteiras da casa e do próprio lar. Tem a ver com economias populares que se desenvolvem nas casas, nas feiras, nos mercados, e que justamente tem características do trabalho doméstico, mas que numa feira estão muito ampliados. Em nossos países, essas são realidades que se tornam cada vez mais majoritárias, e que são pontos de reflexão sobre o que é o trabalho de reprodução social. A produção do valor acontece efetivamente nessas espacialidades, as quais muitas vezes são negadas em termos políticos como espaços de trabalho, e são, ao mesmo tempo, exploradas financeiramente.

Esse é um outro ponto importante no qual trabalho: essas realidades, que não estão estruturadas como trabalho assalariado e não estão formalizadas por um salário, produzem valor e esse valor é explorado pela financeirização dessas economias. Essa exploração, por sua vez, se dá através do endividamento, tanto em vias formais e bancárias, como em vias informais e mesmo ilegais, que formam outras arquiteturas financeiras e se encarregam de extrair valor e de organizar o trabalho nessas realidades que são muito heterogêneas.

O endividamento do qual se extrai valor pode ser encontrado desde o trabalho doméstico, em seu sentido estrito, até o  trabalho informal, na rua, popular, incluindo o trabalho autogerido ou realizado em ambientes comunitários. Então, me parece que sim, o debate sobre o trabalho doméstico deve ser ampliado diante das realidades dos nossos países, que são realidades periféricas. E essa ampliação deve incorporar os debates do feminismo negro, para pensar quem são essas figuras que não se restringem à dona de casa. Tudo isso precisa ser projetado em relação a forma de acumulação atual do capital, no momento neoliberal, ou seja, pensar em como o neoliberalismo se ocupou de esvaziar esses territórios da reprodução, como por exemplo os serviços públicos, que foram privatizados. Pensar em como se habilita um tipo de guerra de baixa intensidade que hoje é necessária para a reprodução desse território. Essas perspectivas nos permitem fazer cruzamentos importantes entre economia feminista e as discussões sobre economia popular, para pensar o processo de informalização do trabalho que acontece em toda a nossa região, por exemplo.

 

KC: Estou buscando em minha pesquisa aproximar a teoria da reprodução social das perspectivas indígenas, e me deparo com o desafio de pensar essa reprodução em territórios marginais ao capitalismo. Ao tratar de territórios indígenas, estamos falando em reprodução social nos mesmos termos?

VERÓNICA GAGO: Esse é um debate bem interessante que você propõe. Eu diria que sim, sobretudo se tomarmos a reprodução social como organização coletiva para reprodução da vida. Nessa perspectiva, deveríamos pensar quais são as formas em que efetivamente se organiza essa reprodução em territórios com essas características específicas. Seria interessante também pensar os desafios que se apresentam historicamente nesse debate, quando colocamos em questão os territórios indígenas. É importante partir do entendimento de que a crise da reprodução social, produzida pelo capitalismo, está hoje tão aguda que traz para o debate também a crise ecológica, e nesse campo outros territórios conectados com formas, saberes e dinâmicas camponesas e indígenas estão justamente produzindo possibilidades de ação muito relevantes. Creio que esse é um trabalho a ser feito, pensar a categoria da reprodução social nesses territórios diante da crise contemporânea. Essa reprodução não está pensada, ou organizada, para a formação de uma força de trabalho capitalista. Esse é um ponto para ser aprofundado.

 

KC: Também tenho pensado na forma como esses territórios enfrentam o processo de acumulação por espoliação. A expropriação dos territórios é também um marco na separação entre produção e reprodução, no caso de muitos povos indígenas essas atividades não estão separadas e defender os territórios é também resistir à essa separação.

VERÓNICA GAGO: Sim, a acumulação por espoliação é um processo que separa, hierarquiza e impõe novas formas de divisão do trabalho que não necessariamente existiam dentro desses povos. Creio que um trabalho muito interessante a ser feito é pensar até onde resiste o conceito de reprodução social por fora do marco da acumulação capitalista. É preciso pensar, também, que esses territórios indígenas não estão completamente isolados. Na medida em que enfrentam projetos de mineração, hidrelétricas, por exemplo, estão enfrentando formas extrativas capitalistas, então não podem ser pensados completamente por fora da dinâmica global.

 

KC: As mulheres indígenas no Brasil estão ocupando novos espaços e trazendo para luta a noção de corpo-território, fortalecendo a ideia do território como lócus da existência material e imaterial do povo, inseparável do próprio corpo, que é um corpo coletivo. Nessa perspectiva a luta pelo território é uma luta pela vida. No contexto indígena, é possível aproximar a noção de corpo-território da noção de reprodução social? A defesa do corpo-território pode ser compreendida como defesa da reprodução social do povo?

VERÓNICA GAGO: Sim, totalmente. Nesse sentido é preciso pensar a reprodução social não em termos individuais, como produção de uma força de trabalho, mas como reprodução do território, que por sua vez é existencial, é um território que compreende a vida humana e não humana, e que precisa ser tratado a partir da complexidade que as perspectivas indígenas aportam para as noções de corpo e de território. Acredito que aparece aqui uma dimensão da reprodução social que é muito interessante, pois intensifica o caráter coletivo, transindividual da reprodução social. Entendo o conceito de corpo-território como sumamente importante. Por um lado, porque amplia a forma como pensamos e como compreendemos a interdependência – esse também como um conceito feminista importante – dos corpos com sua paisagem, com os recursos, com outras formas de vida, e, por outro lado, porque amplia a forma como pensamos esses territórios como uma ecologia complexa de relações. Acredito que além de ter essa potência política, o conceito de corpo-território é uma imagem que imediatamente faz sentido e permite compreender muito bem a forma estratégica como as lutas em defesa dos territórios estão reivindicando essa ecologia e essa relação complexa. Também é muito importante em termos políticos e teóricos, porque nos desloca das perspectivas que partem da premissa do corpo como individual. Nessas perspectivas, a relação com o território vem num segundo momento, o território fica como uma espécie de exterioridade que vem depois, em segundo lugar. Por sua vez, corpo-território como ponto de partida, muda tudo isso, e traz arraigada a noção de interdependência.

 

KC: O transbordamento do corpo como corpo-território é bastante evidente e toma concretude quando tratamos dos territórios indígenas, mas nas cidades é um pouco mais difícil construir essa imagem ampliada do corpo, integrando-o à paisagem, pois exige uma maior abstração. Como tratar o corpo-território no contexto urbano?

VERÓNICA GAGO: As lutas feministas que colocam como necessidade a produção de encontros e assembleias permanentes dos movimentos para organização coletiva, para fortalecimento de redes, têm sido muito importantes. Essa é uma maneira muito concreta de sair do isolamento doméstico e das maneiras com que fomos permanentemente recortadas a um tipo de vida individual que consome serviços, que trabalha, e que ademais se insere em um marco heteronormativo para seu desenvolvimento. A partir dos feminismos, estamos desafiando esses recortes, essa forma de encapsulamento, da privatização da vida, e este enfrentamento é fundamental para visibilizar essas formas negadas de interdependência que fazem possíveis as nossas vidas. Os feminismos estão demonstrando que o fictício é a ideia de individuo, a ideia de que a vida no espaço urbano se encerra em uma relação com as coisas, resumida ao consumo e aos serviços. E a sensibilidade feminista é justamente a de colocar em discussão estas formas negadas de interdependência que nos permitem viver. Tanto em relação ao cuidado, como em relação ao que significa produzir uma ação política e tudo o que isso requer em termos de organização, de cumplicidade e de construção de espaços coletivos. Então acredito que a experiência de organização feminista nestes anos tem sido muito interessante.

No livro A potência feminista, eu destaco um ponto, para tornar concreta essa discussão, sobre como a luta pelo aborto legal, por exemplo, nos permitiu pensar que não estávamos simplesmente reivindicando um direito individual, como um direito burguês estabelecido. Quando estávamos falando do aborto, falávamos de autonomia dos corpos, mas num sentido de autonomia que reconhece a interdependência. Não existe autonomia que não parta dessa interdependência. No urbano há um esforço para desconhecer e negar essa interdependência. E o que as lutas feministas têm feito nos últimos anos é, permanentemente, iluminar e assinalar todos esses vínculos de interdependência que, insisto, estão negados, invisibilizados, são mistificados como serviços e consumo.

 

KC: Visibilizar a interdependência é também um caminho para enfrentar as finanças? Ou seja, como nos desendividamos num cenário neoliberal em que a dívida se coloca como única saída?

VERÓNICA GAGO: Essa é uma questão importante, justamente porque as finanças se colocam como uma solução perversa diante da privatização e da crise. As finanças exploram a interdependência, ou seja, exploram, é claro, o valor através do trabalho, mas exploram também os laços com os vizinhos, família e amigos, as redes de suporte que nos apoiam quando precisamos trabalhar, por exemplo. As finanças absorvem essa produção de cooperação coletiva, e tensionam para que essa cooperação seja também privatizada. Questionar sobre “como nos desendividamos” é central, justamente por permitir pensar formas de desobediência que vão de encontro à privatização da reprodução social, que hoje justamente toma a forma financeira. É preciso investigar como isso acontece.

Primeiramente o capital promove um empobrecimento coletivo, e esse empobrecimento é o que nos coloca o endividamento como obrigatório, ou seja, o único meio para que seja possível a reprodução da vida é através da contração de dívidas. Justamente contra essa ideia necessitamos nos reapropriar dos meios de reprodução social. Gosto muito dessa frase, que também é uma consigna do movimento feminista no Chile, que é a proposta de nos “reapropriar dos meios da reprodução social”. Isso nos coloca novamente diante da consigna clássica de “tomar os meios de produção”. E qual é a perspectiva desse movimento hoje? Hoje temos que pensar essa ação através da reapropriação dos meios para reprodução social.

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