‘Não vamos permitir que a Amazon se aproprie da cultura do livro’

Em entrevista com seu tradutor brasileiro, o escritor espanhol Jorge Carrión, autor de Contra Amazon, comenta as ideias por trás de seu mais recente lançamento no país

Por Reginaldo Pujol Filho
Publicado em Suplemento Pernambuco

 

O catalão Jorge Carrión já publicou romances, ensaios, livros e crônicas de viagens, escreve sobre séries, reflete sobre arte contemporânea e o mundo digital, é colunista de publicações como La Vanguardia e The New York Times em espanhol e ainda é diretor do mestrado em criação literária da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Mas talvez tenha se tornado conhecido em diversos países por uma escrita quixotesca.

Em 2012, publicou o longo ensaio Livrarias. O livro, traduzido em vários idiomas, percorre livrarias do mundo inteiro e pensa sobre a cultura, o significado e a história desses espaços. Carrión, que viajava para conhecer livrarias, passou a viajar para falar delas. Essa relação tornou-se ainda mais intensa quando, em 2017, o autor publicou o ensaio “Contra Amazon: sete razões / um manifesto”.

Como se houvesse espelhado um incômodo difuso de leitores e livreiros do mundo todo, o texto tornou-se viral e espalhou-se em menos de um ano por diversas línguas e países. Entre Livrarias e o ensaio, e mesmo depois dele, Carrión seguiu escrevendo e pensando sobre a cultura livresca, as livrarias e as bibliotecas, e contra a Amazon, o maior hipermercado do mundo, na sua definição.

O conjunto dessa produção ele reuniu na coletânea Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros, lançado no Brasil pela Editora Elefante. Nessa entrevista ele fala sobre o livro, sobre livrarias e pandemia, bibliotecas e, claro, sobre a Amazon.

 

Retomando uma das ideias que você propõe já na apresentação do livro, pergunto se, em tempos de covid-19, com livrarias fechadas e ruas vazias, a Amazon é ainda mais “nosso antagonista”, antagonista dos que vivem as livrarias e as bibliotecas.

Sem dúvida. A Amazon está crescendo exponencialmente durante a crise. Tornou-se uma ameaça monstruosa. Nestes momentos ela tem um poder econômico e de informação realmente gigantesco. Por exemplo, está armazenando em sua nuvem, em parceria com universidades e centros de pesquisa de todo o mundo, os últimos dados sobre a covid-19. Nós delegamos a uma corporação privada a gestão de processos que deveriam ser feitos pela Organização Mundial da Saúde ou pelas Nações Unidas. Não sigamos permitindo que ela se torne dona das ideias de livro e de livraria. Não pertencem a ela.

 

Existem dois textos em Contra Amazon que me parecem em diálogo: “Em defesa das livrarias” (você parte de uma campanha que a Coca-Cola lançou na Espanha em “defesa dos bares” e faz uma reflexão sobre o porquê de as editoras não fazerem o mesmo com as livrarias) e o muito recente “A covid-19 e as livrarias” (você fala das relações e campanhas de editoras e livrarias ao longo da pandemia). Em um e outro, vemos sempre que não existe esta defesa das livrarias por parte dos grandes do mercado editorial. Por que acredita que seja assim?

Eu acredito que é uma visão a curto prazo do negócio. Não querem se indispor com a Amazon, porque ela vende muitos livros das grandes editoras. Mas a Coca-Cola não se indispôs com os supermercados ao apostar nos bares. É um modelo de marketing possível e desejável. E é um tipo de campanha que não só as grandes editoras poderiam assumir, mas também prefeituras ou o Ministério da Cultura [no caso do Brasil, a Secretaria Especial de Cultura], porque as livrarias nutrem a democracia.

 

Parece-me que um dos grandes achados do ensaio “Contra Amazon: sete razões / um manifesto” é a ideia de que a Amazon faz uma “expropriação simbólica”. Poderia falar um pouco mais sobre isso?

Nos capítulos finais de Livrarias, conto como Jeff Bezos [CEO da Amazon] chegou aos livros. Foi por casualidade. Encontrou um nicho de mercado via internet e se aproveitou dele. E apostou suas fichas. Porque os livros tinham um prestígio, uma cultura associada a eles, das quais, ainda vinte e cinco anos depois, a Amazon segue se beneficiando. A marca Amazon existe enquanto usurpação simbólica do nome “Amazônia” (porque, naquela época, os buscadores da internet indexavam em ordem alfabética) e dos valores associados ao livro.

 

As pessoas — menos o Jeff Bezos — estão e estarão com menos dinheiro e sem poder sair para as ruas. Dois poderosos motivos para comprar, sem refletir, na Amazon. O que dizer para as pessoas sobres duas noções que são o “valor” da Amazon: preço e pressa?

A Amazon não paga impostos nos países onde opera, nem respeita os ritmos, os rituais, as formas de ser, o urbanismo das pessoas que ali vivem. É simples assim. Se você quer defender sua economia e seu estilo de vida, é melhor que você não coopere com a Amazon.

 

Lembra quando foi que você se deu conta do poder simbólico das livrarias, quando começou a pensar sobre elas, sobre elas e a Amazon?

Sobre a Amazon, tenho pensado somente há seis ou sete anos, desde que ela chegou à Espanha; mas as livrarias têm me acompanhado desde as minhas primeiras viagens, para Inglaterra ou Guatemala, faz mais de vinte anos. Durante muito tempo, foi uma relação inconsciente, até que, de repente, me dei conta de que já tinha passado mais de dez mil horas em livrarias, que é o tempo que alguém, supostamente, leva para se tornar um especialista em algo, um artesão, de modo que eu sabia interpretá-las e representá-las. E escrevi Livrarias. Foi como minha prova de mestre artesão em livrarias.

 

No livro, você fala e reflete sobre muitas cidades. Por vezes, parece um livro de viagens. Livrarias são partes fundamentais da cultura urbana? E como vê a relação da Amazon com as cidades? Crê que esta é outra diferença das livrarias para “o maior hipermercado do mundo” — estar de fato nas cidades, proporcionar deslocamentos físicos e mentais?

O sistema da Amazon só é válido para cidades como as dos Estados Unidos, não para as cidades europeias (ou algumas americanas), com muitos séculos de história e centros históricos antigos, ruínas e ruas [exclusivas para] pedestres. Eu sempre li as cidades a partir de suas livrarias, me parecem observatórios perfeitos para entendê-las. Não só porque nelas você sempre encontra a bibliografia sobre a cidade em que se encontra, mas também porque cada livraria resume a cidade e o país onde está. Ao mesmo tempo, os conecta com o mundo.

 

Você também fala muito sobre bibliotecas. Acredita que bibliotecas e livrarias estão no “mesmo lado”? Ou seria possível ver uma competição por atenção e sobrevivência entre elas?

Me interessa o triângulo que tem uma livraria, uma biblioteca e uma biblioteca pessoal em cada um de seus vértices. Nesse triângulo, circula a energia dos livros. Os três vértices se necessitam mutuamente.

 

Em uma série de textos, você faz referências muito carinhosas à sua biblioteca. Quantos livros tem nela? Já pensou no que vai acontecer com ela depois da sua morte?

Não sei quantos livros tenho, seis ou sete mil, mas tento que não haja mais [do que isso]. Quer dizer, que para cada livro que entre na casa, saia outro. A biblioteca é a pele da minha casa, é memória de leituras e de viagens, é um termômetro emocional. Necessito dela para recordar quem sou e quem quero ser. Nunca pensei no seu futuro, mas, no final de Livrarias, conto o que o escritor experimental David Markson fez, que é uma opção muito boa: após a sua morte, sua biblioteca foi vendida para a Strand, de Nova Iorque, e, portanto, se dispersou por centenas de milhares de bibliotecas de leitores, alguns de Markson, mas a maioria nem sequer sabe que ele existiu.

 

Em “Desarticulo minha biblioteca”, vemos uma biblioteca que vai ocupando espaços da sua casa (escritório, sala de jantar, corredor, quarto). Bibliotecas pessoais e o modo como vão crescendo, às vezes, não fazem você pensar em Casa tomada, de Cortázar?

Nesses dias, com tanto varrer e tanto cozinhar, pensei muito nesse conto. Também na maravilhosa versão gráfica feita por Juan Fresán, o pai de Rodrigo Fresán [escritor argentino]. O pó é muito pior que os livros. Como é possível que haja tanto? Se você pensa em como o pó invade tudo, entende melhor como os vírus se expandem.

 

No livro, encontramos Borges, Burroughs, Manguel, Curzio Malaparte, David B. e tantos outros escritores. Contra Amazon poderia ser — ou sugerir — uma espécie de biblioteca imaginária ou metabiblioteca?

Tudo o que eu escrevo tem a ver, de um modo ou de outro, com livros, viagens e telas. Tento não ser muito cansativo com minhas leituras de referência, por isso em Contra Amazon não aparecem tanto Bolaño, Sebald ou Cortázar, porque já estão muito presentes em Livrarias. Por outro lado, não posso evitar sempre retornar a Borges.

 

Já imaginou como serão as livrarias e as bibliotecas pós-pandemia?

Prefiro não perder muito tempo pensando no futuro. Mas me lembrei de que, na Cidade do México, eu estive em uma livraria secreta, em uma casa particular, El Burro Culto. Ali existe um modelo: você marca uma hora, uma única pessoa, uma hora inteira, conversando com o livreiro e olhando os livros.

 

Como estão na Espanha as relações entre livreiros e editoras? Pergunto porque, no Brasil, especialmente depois das crises das livrarias Cultura e Saraiva, é muito comum ver as editoras fazendo vendas diretamente aos leitores, quase como concorrentes das livrarias.

Aqui a maioria das editoras segue respeitando a ideia de que as livrarias sejam as intermediárias. Essa venda direta é, aliás, o puro modelo Amazon: destruir os intermediários. A crise congelou tudo, veremos como é o degelo.

 

Livrarias, o manifesto “Contra Amazon” e agora o livro Contra Amazon fizeram a tua obra circular globalmente. Não é estranho ter tanto sucesso falando de algo em eterna crise, com sua sobrevivência questionada todos os dias?

Tento não ser nostálgico nem apocalíptico. Para mim, os livros, as livrarias e as bibliotecas estão intensamente vivas. As telas também estão. Falemos da vida, não percamos tempos falando da morte.

 

Você diz que as livrarias são perguntas sem respostas. Que perguntas as livrarias nos fazem hoje?

Neste momento, as livrarias nos indagam sobre nossa necessidade de ser táteis, de dar abraços, de fazer festas, de tocar o papel. Vivemos no Zoom e na Netflix. No espaço da livraria nos aguarda um interrogatório sobre o que realmente significa a nossa pele.

 

Ao longo do confinamento em Barcelona, você se converteu no “bibliotecário” do seu prédio. Poderia falar sobre essa iniciativa e como foi?

Durou umas semanas e foi interessante. Emprestei algumas dezenas de livros aos meus vizinhos. Por WhatsApp, com luvas, compartilhei algumas leituras. E isso nos ajudou a nos conhecermos melhor. Suponho que todos temos que pensar em estratégias para compensar o isolamento ao qual fomos condenados pela crise. Os vizinhos, as comunidades, os bairros, as livrarias: pensemos neles para que nossas cidades tenham ferramentas para sobreviver à próxima pandemia.

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