fbpx

Por bell hooks

 

Nos últimos anos, meu trabalho tem se debruçado sobre o papel do amor no combate à dominação. Contemplar os fatores que levam as pessoas a lutar por justiça e a se empenhar em construir uma comunidade me instigou a pensar criticamente sobre o lugar do amor. Não importa se a questão é acabar com o racismo, o machismo, a homofobia ou o elitismo de classe — quando entrevisto pessoas sobre o que as leva a superar o pensamento e a ação dominadores, elas invariavelmente falam de amor, de aprender a aceitar as diferenças em alguém com quem se importam. Falam do enorme desafio de desejar a conexão e a união com alguém radicalmente diferente ou que tenha convicções e opiniões tão distintas que represente uma fonte de estranhamento e conflito, a tal ponto que apenas uma contínua vigilância crítica e cuidadosa pode garantir o contato duradouro. Para muitos desses indivíduos, o que os tem impulsionado na direção do pensamento crítico e da mudança é o envolvimento ativo com movimentos que lutam pelo fim da dominação.

Quando a teoria feminista e a crítica cultural privilegiaram o fim da dominação, desafiando todos nós a ultrapassar as barreiras criadas pela diferença racial, de gênero, de classe, sexual e/ou religiosa, pelo menos durante algum tempo pareceu que entraríamos em um admirável mundo novo, onde as diferenças poderiam ser compreendidas e acolhidas, onde todos procuraríamos aprender com o “outro”, quem quer que ele fosse. Toda essa teoria a respeito de cruzar fronteiras, de encontrar um modo de “pegar um pouquinho do outro”, não alterou fundamentalmente a natureza da cultura de dominação. Nossa teoria era muito mais progressista e inclusiva em sua visão do que nossas práticas cotidianas. Em nosso dia a dia, todos enfrentamos barreiras de comunicação — hierarquias divisionistas que tornam nossa união difícil, para não dizer impossível. Muitos de nós achávamos mais fácil nomear o problema e desconstruí-lo, e, no entanto, era difícil criar teorias que nos ajudassem a construir comunidade, a atravessar fronteiras com a intenção de permanecer verdadeiramente conectados em um espaço de diferença por tempo suficiente para sermos transformados.

Os discursos públicos sobre raça e gênero criaram novos modos de pensar e saber. Falar de classe e sobre as muitas maneiras em que diferenças de classe separam grupos tem sido bem mais difícil. O posicionamento e o status de classe tendem, com frequência, a nos conectar mais intimamente ao sistema econômico dominante e a suas hierarquias correspondentes. Por exemplo: é muito mais provável que uma pessoa branca crie vínculos com uma pessoa negra quando ambas compartilham um estilo de vida em comum. É muito menos provável que uma pessoa materialmente próspera estabeleça vínculos com alguém pobre e indigente. Um dos assuntos mais difíceis e delicados de discutir entre afro-estadunidenses é a realidade das diferenças de classe, de forma geral e entre nós. A posição central que a raça vem ocupando em nossos discursos políticos tem, muitas vezes, ofuscado o modo como disparidades de classe desestabilizam noções de unidade racial. E, no entanto, associadas à integração racial, essas diferenças criaram um contexto cultural no qual o próprio sentido da negritude e seu impacto em nossa vida variam muito entre pessoas negras. Não há mais uma noção comum de identidade negra compartilhada.

Em outras palavras, um senso de identidade compartilhada já não é uma plataforma capaz de aproximar as pessoas de maneira significativamente solidária. Ao lado da classe, questões de gênero e consciência feminista serviram para posicionar pessoas negras em campos distintos, criando conflitos que só podem ser resolvidos por meio da educação para a consciência crítica. Há ainda as práticas religiosas em transformação. Em nosso país, houve um tempo em que se supunha que toda pessoa negra era cristã ou que, pelo menos, vinha de uma família cristã. Não é mais o caso. Hoje, crianças negras têm acesso a diversas práticas religiosas. Algumas são criadas em tradições muçulmanas e budistas, sem conhecimento do credo cristão. E, mais do que nunca, a juventude negra tem escolhido não seguir nenhuma religião. Consequentemente, a linguagem teológica compartilhada, que outrora serviu de base para a comunicação e a conexão, não é mais um pressuposto.

Muitas dessas mudanças na natureza da identidade negra são uma consequência direta da integração racial. Antes, a maior parte das pessoas negras instruídas, especialmente aquelas com diplomas de nível superior, era educada dentro de um contexto pedagógico segregado similar e mais do que propensa a partilhar de uma mesma mentalidade. Foi a movimentação política que permitiu maior mobilidade de classe, possibilitando que pessoas negras materialmente prósperas deixassem comunidades historicamente negras e vivessem em outros lugares. A abertura de possibilidades educacionais levou à formação de classes de indivíduos negros com históricos de instrução radicalmente diferentes, perspectivas e valores diversos, além de tendências políticas variadas. Por conseguinte, a união entre pessoas negras (mesmo dentro de famílias sem diferenças de classe expressivas) se tornou mais difícil.

Apesar das diferenças de classe, as pessoas brancas, como um grupo, mantêm (consciente ou inconscientemente) algum grau significativo de união, a despeito da diversidade de pontos de vista. O pensamento supremacista branco continua a ser a cola invisível e visível que mantém pessoas brancas conectadas, independentemente de várias outras diferenças. Politicamente, o pensamento supremacista branco foi criado para servir a esse propósito. Gravado na consciência de toda criança branca já no nascimento e reforçado pela cultura, o pensamento supremacista branco tende a funcionar de maneira inconsciente. Essa é a principal razão pela qual é tão difícil desafiá-lo e transformá-lo.

Para falar aberta e honestamente sobre raça nos Estados Unidos, é útil começar com a compreensão de que o pensamento e a prática da supremacia branca são o fundamento político subjacente a todos os sistemas de dominação baseados na cor da pele e na etnicidade. Ao descrever o sistema político em que vivemos nos Estados Unidos, uso com frequência a complexa frase patriarcado supremacista branco capitalista imperialista. Essa frase é útil porque não prioriza um sistema em detrimento de outro, mas nos oferece uma maneira de pensar sobre os sistemas interligados que trabalham juntos para defender e manter culturas de dominação.

No entanto, falando e escrevendo sobre esses sistemas há mais de trinta anos, compreendi que a maioria dos cidadãos estadunidenses resiste à noção de que esta é uma nação fundada e colonizada sobre as bases do pensamento e da ação supremacista branca. Ainda assim, como nação, sempre tivemos um discurso público sobre raça e racismo. E, quando líderes do nosso país pediram um diálogo nacional acerca dessas questões, houve pouca resistência. Os Estados Unidos foram colonizados e fundados por uma política supremacista branca que exigiu incontáveis reflexões, escritos e discussões sobre raça. Pessoas brancas de todos os lugares e classes, falando todos os tipos de língua, migraram para cá na esperança de criar para si uma vida melhor, mais próspera e livre. A maior parte delas, coletivamente, aceitou uma identidade nacional baseada nas ficções de raça e racismo criadas pelo pensamento e pela ação da supremacia branca. O vínculo com base na branquitude compartilhada serve de alicerce para um senso de significados, valores e propósitos compartilhados. Com o apelo para preservar a branquitude, a colonização imperialista se tornou o sistema de crenças que apoiou o genocídio de nativos indígenas, o roubo descarado de suas terras e a criação de reservas segregadas. Apesar da presença de indivíduos africanos que chegaram ao chamado novo mundo antes de Colombo — como documenta a obra seminal de Ivan Van Sertima, They Came Before Columbus [Eles vieram antes de Colombo] —, o pensamento e a ação da supremacia branca aceitaram a escravização de negros africanos, apoiando sua exploração e sua opressão brutais.

Vivendo muito próximos de pessoas negras escravizadas, dependendo delas para lhes servir de forma obediente e subserviente, os dominadores brancos precisavam de uma modalidade psicológica de colonização que mantivesse cada um no seu lugar, que ensinasse a todos sua posição na hierarquia racial que o pensamento e a prática da supremacia branca buscam estabelecer. Naquele momento, as noções de supremacia branca eram fluidas e mudavam constantemente para atender às necessidades dos colonizadores brancos dominadores. Quando a lógica supremacista branca decretou todas as pessoas negras como doentes e impuras, essa linha de pensamento teve de ser um pouco modificada, para deixar espaço suficiente apenas para que se considerasse aceitável que algumas pessoas negras cozinhassem para proprietários brancos e cuidassem de seus filhos. Quando a lógica supremacista branca decretou que o cérebro de pessoas negras era menor que o das brancas, tornando-as intelectualmente inferiores, e então um gênio negro bem-educado se revelava, era preciso haver espaço para exceções dentro da teoria da superioridade branca. Um dos aspectos impressionantes da lógica supremacista branca tem sido, sem dúvida, a fluidez, a capacidade de se ajustar e se transformar de acordo com a necessidade e a circunstância.

Ao longo de todo o século XIX e início do XX, diálogos sobre a supremacia branca eram comuns. Poucas pessoas brancas achariam estranho o silêncio sobre o assunto. No entanto, falar de supremacia branca em nossa sociedade é considerado não apenas um tabu, mas também irrelevante. Quando tratado abertamente, sempre há um ouvinte ávido a insistir que o termo supremacia branca tem pouco significado nos Estados Unidos hoje em dia, que se trata de uma realidade extrema demais para ser relevante nas discussões sobre raça e racismo.

Quando eu falo com vários públicos sobre o patriarcado supremacista branco capitalista imperialista, o aspecto que os indivíduos mais resistem a reconhecer nesses sistemas políticos interligados é a supremacia branca. E, no entanto, se não pudermos culturalmente aceitar o modo como o pensamento e a prática da supremacia branca elucidam aspectos de nossa vida, independentemente da cor da pele, nunca conseguiremos ir além da raça. Ao contrário da raça e do racismo, que não prejudicam abertamente as massas de pessoas de maneira que cause danos diretos, a supremacia branca é a ideologia dissimulada que é a causa silenciosa do dano e do trauma. Pense nas crianças negras, tanto ricas quanto pobres, que assistem por longas horas a uma televisão que imprime em sua mente jovem a noção de que branco é bom e preto é ruim. Nos Estados Unidos, de forma geral, pais que imaginam ter ensinado uma postura ativamente antirracista ficam chocados quando descobrem que seus filhos nutrem intensos sentimentos antinegros. Esse é apenas um exemplo. Outro pode ser o casal inter-racial em que o indivíduo branco proclama seu amor imortal por um parceiro negro e, logo em seguida, fala sobre sua crença de que pessoas negras são intelectualmente inferiores. Não se trata de uma expressão de preconceito racial convencional. No entanto, ela nos lembra de que alguém pode ser íntimo de pessoas negras, afirmar até mesmo nos amar e, ainda assim, manter atitudes supremacistas brancas em relação à natureza da identidade negra.

Pensar na supremacia branca como a base da raça e do racismo é crucial, porque nos permite enxergar mais do que a cor da pele. Permite que olhemos para todas as incontáveis maneiras como nossas ações podem estar impregnadas pelo pensamento supremacista branco, independentemente de nossa raça. Sem dúvida, a raça e o racismo nunca se tornarão desimportantes se não conseguirmos reconhecer a necessidade constante de desafiar a supremacia branca. Quando os estudos culturais criaram um contexto no qual a questão da branquitude e do privilégio branco pudesse ser estudada e teorizada, uma nova maneira de pensar e falar sobre raça parecia estar surgindo. Embora estudiosos tenham escrito muito sobre o privilégio branco, nem sempre se esforçaram para mostrar a relação entre noções subjacentes de supremacia branca e privilégio branco. A hiper-racialização da branquitude fez parecer, então, que os temas principais eram a pele branca e os privilégios que ela permitia, e não os modos supremacistas brancos de pensar e agir, expressos por pessoas de todas as cores de pele. É muito provável que a recentralização da branquitude tenha ajudado a silenciar teorias e práticas necessárias para que possamos, de fato, como nação, aprender a nos livrar do racismo.

De maneira similar, o foco feminista no gênero, que inicialmente forneceu insights maravilhosos sobre a natureza do patriarcado e deu esperança àquelas que lutavam para acabar com a exploração e a dominação machistas, foi rapidamente usurpado por um foco despolitizado no gênero. Muitos trabalhos atuais voltam-se para a raça e para o gênero, mas não de um ponto de vista feminista ou antirracista. Essa é uma tendência profundamente perturbadora. Há um clima crescente de frustração e desespero entre aquelas de nós que passamos a vida pensando e escrevendo de maneira crítica sobre meios de transformar tanto nossa vida individual quanto nossa sociedade, em busca de desafiar e alterar os sistemas de dominação. Sentimos que estamos constantemente desconstruindo e estabelecendo as bases para alternativas sem fazer as intervenções necessárias no cotidiano das pessoas, o que é necessário para que nossa sociedade seja totalmente transformada.

De modo significativo, nos últimos dez anos tem havido tantos cortes em faculdades e universidades que o anseio pela diversidade de professores e funcionários não só não está acontecendo, como é improvável que venha a acontecer. Em muitas instituições, quando os empregos aparecem, as hierarquias convencionais de raça e gênero tomam conta do lugar. Isso faz muitos pensadores críticos ressaltarem a importância de incentivar todos a aprender novos pontos de vista, a se envolver em pensamentos e ensinamentos menos tendenciosos. O fardo de aprender novos pontos de vista não deveria ter sido colocado apenas nos ombros das pessoas de cor.1 Necessitamos, o tempo todo, de intervenções que ajudem todos nós a entender melhor o modo como os sistemas interligados de dominação trabalham juntos.

O conjunto variado de ensaios em Escrever além da raça emerge dos meus esforços de examinar os modos como se escreve e se fala, hoje, sobre raça, gênero e classe. Depois do auge dos estudos feministas e culturais, esferas nas quais, durante algum tempo, novos caminhos foram abertos e discussões radicais de pontos de vista não enviesados foram colocadas em evidência, esses discursos não estão mais na vanguarda de nossa consciência. Ao mesmo tempo que os temas de raça, gênero e classe ainda são discutidos, eles também estão cada vez mais apartados de debates sobre o fim de perspectivas enviesadas e, portanto, correm o risco de se tornar meros tópicos de investigação sem relação com o aprendizado transformador ou com a mudança prática.

Nestes ensaios, concentro a atenção em questões de responsabilidade, ponto de vista e supremacia branca. Especificamente, examino aquelas produções culturais que aparentam abordar tópicos de raça, gênero e classe, enquanto meramente reinscrevem ideologias de dominação. Sem intenção de apenas pintar uma imagem desanimadora da situação atual, discuto, em vários destes textos, o que permite que nos conectemos, superando diferenças, e enfatizo os padrões de mudança positiva. Sobretudo, estou tentando pensar e escrever além dos limites que nos mantêm hiper-racializados. Encontrar uma maneira de ir além da raça não é apenas a meta do pensamento crítico, é o único caminho para a longevidade emocional, o único caminho verdadeiro para a libertação.

 

1. Nos Estados Unidos, país de origem da autora, o termo “pessoas de cor” (do inglês people of color) é atualmente uma expressão sem cunho pejorativo e engloba negros, marrons, latino-americanos, indígenas, muçulmanos etc. [N.E.]

Também pode te interessar