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Inédita até o ano passado, obra de Audre Lorde ganha o Brasil

Quatro livros que reúnem ensaios e poemas da feminista negra estadunidense devem ser lançados entre o segundo semestre de 2020 e o ano que vem no Brasil

Por Mariana Peixoto
Publicado em O Estado de Minas

 

Uma coincidência acabou se revelando uma boa oportunidade editorial. Inédita no mercado de livros brasileiro até o ano passado, a escritora e feminista negra norte-americana Audre Lorde (1934-1992) está chegando ao país com um lançamento de peso promovido pela união de editoras independentes.

Quatro delas – a mineira Relicário, a carioca Bazar do Tempo e as paulistas Ubu e Elefante – estão publicando quatro volumes de Lorde, que têm inclusive o mesmo projeto gráfico. São eles A unicórnia preta (Relicário) e Entre nós mesmas – Poemas reunidos (Bazar do Tempo), dedicado à sua obra poética; Sou sua irmã – Escritos reunidos e inéditos (Ubu), volume ensaístico, e Zami, uma biomitografia (Elefante), autobiográfico.

Sou sua irmã acabou de ser lançado. Os volumes dedicados à poesia, em edição bilíngue (inglês e português), chegam ao mercado em setembro. Zami está previsto para o ano que vem.

“Quando pegamos a autorização (da publicação) com os herdeiros, não havia nada vendido dela em 2018. Hoje em dia, toda a obra da Lorde está praticamente garantida no Brasil. Foi uma coincidência (o fato de diferentes editoras resolverem publicá-la quase ao mesmo tempo), mas a questão é que o mercado brasileiro está muito atento para as questões raciais”, comenta Ana Cecilia Impellizieri Martins, editora da Bazar do Tempo.

Nascida em Nova York, filha de imigrantes caribenhos do Harlem, Audre Lorde, escritora, poeta, ativista dos direitos civis, lésbica e pioneira do feminismo negro, se graduou em biblioteconomia na Hunter College. Trabalhou como ghost-writer, operária, assistente social e técnica de raios x, até se estabelecer no meio acadêmico.

Casou-se, teve dois filhos, divorciou-se, fez mestrado em biblioteconomia na Universidade de Columbia. Seu primeiro livro de poesia, The first cities, foi publicado em 1968. Em 1984, iniciou uma longa temporada em Berlim, atuando no movimento afro-alemão e se fixando como professora em universidades da Alemanha. Tal vivência resultou no documentário Audre Lorde – The Berlin years (2012), de Dagmar Schultz. Ela morreu de câncer no fígado em 1992.

ARTIGOS No mercado editorial, a obra de Lorde aportou no Brasil no ano passado, primeiramente com os artigos Não existe hierarquia de opressão e Idade, raça, classe, gênero: mulheres redefinindo a diferença, textos incluídos por Heloísa Buarque de Hollanda no volume Pensamento feminista: Conceitos fundamentais, que a ensaísta e professora organizou para a Bazar do Tempo.

Já em dezembro, a mineira Autêntica publicou Irmã outsider, compilação de 15 ensaios dos anos 1970 e 1980, em que a autora discute a experiência de estar fora do que chama de “norma mítica”: branca, heterossexual e magra. Djamila Ribeiro, uma das entusiastas e disseminadoras da obra de Lorde no Brasil, assinou a quarta capa desse volume. Ela também foi a organizadora de Sou sua irmã.

Um dos destaques de Sou sua irmã é o diário de Lorde, Uma explosão de luz, que domina um terço da narrativa. “É um diário íntimo, em que ela faz uma descrição de seu cotidiano em função do diagnóstico de câncer. Esse texto tem uma coisa particular, pois mostra um embate dela consigo mesma de forma muito poética. Para sua poesia, ela tirou partes inteiras do diário. São coisas que escrevia saídas das vísceras, algo muito imagético e impressionante”, comenta Florencia Ferrari, editora da Ubu.

De acordo com Florencia, cada editora havia comprado um volume sem saber da intenção da outra. “Normalmente, um autor é publicado por uma editora. Nesse caso, como cada uma adquiriu um livro, achamos que lançar conjuntamente traria um impacto maior para o reconhecimento da autora. E há também a questão da otimização dos recursos, um ajuda o outro em um momento de crise.”

POESIA Os volumes dedicados à poesia serão inclusive rodados na mesma gráfica. “A poesia é a maior forma de expressão de Audre Lorde. O nome dela já havia aparecido para mim diversas vezes, havia lido poemas dispersos traduzidos na internet. Só que ela ter se tornado um nome mais falado é algo mais recente, que vem deste resgate de escritoras negras com importância histórica”, comenta Maíra Nassif, da Relicário.

“As editoras brasileiras entenderam que não há debate possível sem passar pela questão racial. A autobiografia da Angela Davis (lançada originalmente em 1974 e publicada pela Boitempo em 2019) demorou séculos para chegar aqui, mas foi super bem-aceita. Acho que o Brasil não só está prestando atenção nesses autores trazidos de fora, como também valorizando o que está aqui dentro”, avalia Ana Cecília.

Ela comenta que, para a publicação conjunta de Lorde, as editoras reuniram nomes importantes da comunidade de intelectuais negras. A tradutora, crítica e poeta Jess Oliveira prefaciou A unicórnia preta e revisou Entre nós mesmas, que por sua vez tem prefácio da escritora e editora mineira Cidinha da Silva.

Duas poetas e tradutoras também do feminismo negro trabalharam nos volumes de Lorde. A carioca Stephanie Borges traduziu A unicórnia preta e Sou sua irmã (também havia traduzido Irmã outsider), enquanto a brasiliense Tatiana Nascimento foi a responsável pela tradução de Entre nós mesmas. Os volumes dedicados à poesia trazem no final um glossário do iorubá.

IORUBÁ Publicado originalmente em 1978, A unicórnia preta, além dos temas da negritude, feminismo e experiência lésbica, também traz elementos da cultura iorubá. “Lorde organiza suas ideias de maneiras diferentes nos gêneros literários. A unicórnia foi escrito mais ou menos na mesma época em que Irmã outsider, então ela cita poemas nos ensaios. O pensamento feminista perpassa toda a sua obra, mas se desdobra de maneiras diferentes. Na poesia, ele não é necessariamente tão óbvio, enquanto nos ensaios ela é muito direta”, diz Stephanie.

A tradutora começou a prestar atenção em Lorde há pelo menos cinco anos. “Acho que é uma autora muito lida na academia, porque o pensamento dela é muito importante para o pensamento feminista negro. Só agora ela deixa de ficar mais concentrada na academia e passa a ser conhecida do grande público.”

Entre nós mesmas reúne três livros de poesia: De uma terra onde o outro povo vive (1973), Entre nós mesmas (1976) e Poemas escolhidos – Velhos e novos (1982). “A poesia dela em geral é bem hermética, menos acessível do que sua obra ensaística. Na prosa ela é mais para cima”, diz Tatiana.

Tatiana começou a trabalhar na obra de Lorde em 2009, época em que fez seu doutorado em estudos da tradução na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). “Quando comecei a pesquisar autoras negras, especialmente lésbicas, faltavam referências no Brasil. O trabalho de Audre Lorde é muito verdadeiro, ela foi uma pensadora muito pra frente”, afirma.

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