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Por Tadeu Breda

 

O primeiro turno das eleições gerais de 2022 consolidou de vez o bolsonarismo no Brasil — fenômeno político, social e cultural cujo funcionamento ainda estamos longe de decifrar. Com uma coligação de apenas três partidos marcadamente de direita (PL, PRB e PP), e sem papas na língua, Jair Bolsonaro superou todas as pesquisas e conquistou a preferência de 51,7 milhões de eleitores, ou 43,2% dos votos válidos, acabando em segundo lugar.

A sua sigla (PL) conquistou, sozinha, 99 cadeiras na Câmara — maior bancada eleita por uma única legenda nos últimos 24 anos — e treze no Senado. Ex-ministros e aliados notórios do presidente obtiveram excelentes votações na corrida pela Câmara (Eduardo Pazuello [segundo mais votado do Rio de Janeiro], Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro e Ricardo Salles [terceira, quarto e quinto mais votados do país, todos de SP], Mario Frias [SP]) e pelo Senado (Marcos Pontes [SP], Damares Alves [DF], Hamilton Mourão [RS], Tereza Cristina [MS], Romário [RJ], Rogério Marinho [RN], Sergio Moro [PR]), além de se elegerem para governos estaduais (Claudio Castro [RJ]) ou irem para o segundo turno (Onyx Lorenzoni [RS], Tarcísio de Freitas [SP]).

O deputado mais votado do Brasil em 2022 é um jovem vereador bolsonarista de Belo Horizonte, Nikolas Ferreira, do PL, “consagrado para Cristo”, 26 anos, leitor de Olavo de Carvalho desde os treze. O número de policiais eleitos — além de outros defensores das pautas encabeçadas por Jair Bolsonaro, como privatizações, antipetismo e conservadorismo religioso — também é grande, formando uma significativa maioria ideológica no Congresso.

Apesar da vitória de Lula com 57,2 milhões de votos (48,4%), da expressiva votação do líder sem-teto Guilherme Boulos (segundo deputado mais votado do país), das vagas garantidas por duas indígenas (Sônia Guajajara [SP] e Célia Xakriabá [MG]), duas mulheres trans (Erika Hilton [SP] e Duda Salabert [MG]) e por lideranças do movimento negro e sem-terra, do aumento da bancada da federação PT-PCdoB-PV (80 deputados) e da federação PSOL-Rede (14 deputados) na Câmara, podemos dizer que o pleito de 2 de outubro mostrou uma incontestável legitimação do projeto bolsonarista junto à população brasileira.

Após quatro anos de governo, quase setecentas mil mortes por covid-19 (um genocídio), gasolina e gás de cozinha mais caros do século, aumento da cesta básica, inflação a 10%, 33 milhões de brasileiros passando fome, desemprego, desmatamento recorde, rachadinhas, ligações com as milícias, privatização da Eletrobras, orçamento secreto, ameaças de golpe, anti-indigenismo militante, simbologia nazista e supremacista etc., Bolsonaro teve mais votos do que em 2018.

Enquanto Lula precisou costurar uma ampla aliança com dez partidos, incluindo notórios ex-adversários (a começar pelo vice, Geraldo Alckmin) e figuras do complô golpista que derrubou Dilma Rousseff em 2016, Bolsonaro obteve votação similar sem fazer concessões: não amenizou o discurso fundamentalista cristão, não parou de elogiar as armas, não deixou de escrotizar mulheres e jornalistas, não calou as críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), não voltou atrás em sua desconfiança com relação às urnas eletrônicas, não se desculpou pela gestão da pandemia nem por imitar pessoas sufocando no auge do surto de coronavírus, não engoliu nenhuma mentira — enfim, manteve a coerência de seu projeto necrofascista.

Como resultado, neste 2 de outubro o ex-capitão firmou-se como o principal líder político brasileiro da atualidade, com muita aderência popular, mesmo sem contar com o apoio de movimentos sociais organizados. A força que demonstrou é simplesmente impressionante. Um exemplo notável dessa força é o fim da hegemonia de quase trinta anos do PSDB em São Paulo — proeza do bolsonarismo —, onde a maioria dos eleitores resolveu abandonar o bairrismo ferrenho e a tradicional rivalidade com o Rio de Janeiro para votar em um ex-militar carioca filiado ao partido da Igreja Universal do Reino de Deus.

Neste momento, além do enorme respaldo nas urnas e da maioria ideológica no Congresso, Bolsonaro conta com o apoio das Forças Armadas, das polícias, do agronegócio, de boa parte dos líderes e dos fiéis das igrejas evangélicas e católicas e do capital financeiro. É uma hegemonia nunca vista na democracia brasileira. Além disso, espalhados pelo país existem milhões de cidadãos prontos para vestir a camisa verde-amarela da seleção e defender o líder nas ruas, se necessário, como ficou claro nos últimos Sete de Setembro e mesmo nestas eleições. Nunca é demais lembrar que muitas dessas pessoas têm porte de arma — contingente que só cresce, com a militância ativa do Jair.

Por tudo isso, não podemos permitir que Bolsonaro vença no segundo turno. O próximo presidente da República escolherá quatro ministros do STF. Caso essa prerrogativa seja dada ao ex-capitão, ele terá maioria também na instância mais alta do Judiciário, com seis dos onze magistrados da suprema corte — todos absolutamente alinhados a seu projeto, como os dois já indicados em seu primeiro mandato.

Apenas podemos imaginar o que um presidente confessadamente autoritário faria com tamanho poder institucional, político, social, cultural e econômico, sem que o sistema republicano de freios e contrapesos (de resto, falido) possa minimamente contê-lo. Até porque, caso realmente vença, terá derrotado, nas urnas, um dos maiores líderes políticos da história do Brasil — o que, graças ao tapetão viabilizado pelo “grande acordo nacional, com o Supremo, com tudo”, e que resultou na prisão do petista, não aconteceu em 2018.

Neste momento, Lula é a única barreira que temos contra essa tempestade perfeita. Só Lula poderá retardar a consolidação completa do projeto bolsonarista. E agora não interessa discutir se conseguirá ou não governar. Só o que importa é deter a ditadura que Bolsonaro tanto prometeu e que obviamente conseguirá estabelecer no país, dentro das instituições, caso seja reeleito. Entretanto, tudo indica que o petista terá imensa dificuldade em conseguir os poucos votos de que precisa para atingir maioria e voltar à presidência.

O antipetismo desfilado por Simone Tebet e Ciro Gomes na campanha deixam pouca margem para uma transferência automática de votos, e o pouco mais de um milhão de eleitores de Felipe D’Ávila (Romeu Zema, governador reeleito de Minas Gerais pelo Novo, apressou-se em abraçar e declarar apoio ao capitão) e Soraya Thronicke certamente irão para Bolsonaro. Talvez Tebet, pelas duras críticas que fez a Bolsonaro quanto à demora na compra de vacinas contra a covid-19, e recorrendo a manobras narrativas que ainda teremos que conhecer, consiga ajudar o petista.

Ciro, por outro lado, passou os últimos dias despejando toda sua munição no ex-sindicalista e, na véspera do pleito, divulgou foto ao lado de Bolsonaro. Quando decidiu, por decisão do seu partido, o PDT, declarar voto em Lula, o fez sem sequer citar o nome do petista: quem assistir ao vídeo sem informação prévia simplesmente não sabe de qual candidato está falando. Seria risível, não fosse catastrófico.

Lula esteve isolado na campanha. Era o único candidato de centro em um cenário dominado pela direita. Sua maior chance era ganhar no primeiro turno. Fazer mais concessões à direita, ao mercado, ao agronegócio — caminho que muito provavelmente será adotado pela campanha petista, pois esse é o DNA do lulismo — não vai adiantar: Lula não retirará votos de Bolsonaro. (É mais fácil que aconteça o contrário, pois Jair já está usando a máquina pública para adiantar e prometer mais parcelas do Auxílio Brasil.)

Por que uma pessoa identificada com a direita escolheria Lula, mesmo com todas as concessões? O máximo que podemos esperar do asco que setores mais limpinhos e civilizados da direita sentem de Bolsonaro — um asco tão grande quanto o que sentem de Lula, ou até menor — é um voto nulo.

Esquerdizar o discurso — o que Lula jamais faria, porque nunca fez: sua trajetória política é um longo caminhar rumo ao centro — tampouco lhe amealharia melhores resultados eleitorais: apesar dos respiros progressistas vistos nas urnas, está bem claro que o país vive um momento hiperconservador e hiperneoliberal, e que todo o poder eleitoral que pode ser mobilizado pela esquerda já lhe foi destinado no primeiro turno.

Em entrevista ao Roda Viva em 3 de outubro, Guilherme Boulos disse não acreditar que todas as pessoas que votaram em Bolsonaro sejam totalmente fiéis a seu projeto. “Não acho que nós temos 51 milhões de fascistas no Brasil. Essa seria uma tragédia muito maior do que a que a gente está vivendo.”

Eis a grande questão: se realmente não somos um país com 51 milhões de fascistas, por que Bolsonaro, depois de quatro anos de barbárie, continua tendo essa tremenda popularidade? Por que nosso discurso não consegue desmobilizar o voto em Bolsonaro e em seus aliados? Com qual outro discurso poderemos convencer um eleitor supostamente não fascista a não votar em um necrofascista?

Será a tragédia brasileira muito maior do que sugerem as urnas?

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