Por Breno Castro Alves
@trocavales
Newsletter da Elefante

 

Fez 4,7 ºC na noite em que a Cinemateca queimou. Malditos nem cinco Celsius deram as caras em São Paulo. Não esquentou a noite, ainda que queimassem memórias irreparáveis. Dias antes, Borba Gato queimou de pé. A estátua é feita de concreto e no máximo chamusca, diferente dos rolos de filmes de acetato, diferente de Paulo Galo e Géssica Barbosa, que, feitos de carne, queimam. Ambos ainda ilegalmente presos durante a redação deste texto. Além do cinema nacional e desses dois brasileiros, pai e mãe, queima seu menino de três anos que, diferente do bandeirante, também é feito de carne.

Por vezes a realidade exagera. Falamos de uma semana em que o Brasil recebeu aos sorrisos uma neta do nazismo, quase no mesmo dia em que emergiram cartas de apoio trocadas entre presidente Messias e grupos neonazistas desde 2004 – e então o leitor mais cínico pensa em voz alta ORA, QUEM DIRIA?

Bom, os povos originários dizem desde sempre. Um dos grandes méritos de Do Corpo ao Pó, obra do antropólogo Bruno Martins, é demonstrar a altivez com que os Guarani Kaiowá resistem ao extermínio continuado. Lançado pela Elefante em 2017, relata uma sociedade em que o luto não fica no caminho e nem de fora da busca pelo modo bom e belo de viver, o teko porã.

A morte e as perdas assumem um lugar de resistência em muitos povos que vivem retomadas territoriais, dinâmicas coletivas de embate político pela terra, práticas que adensam “a história local, as relações parentais e a legitimidade da luta pelo território. O choro se mistura com a celebração da força do coletivo, e alimenta o sentimento de irredutibilidade do desejo de viver com os parentes no tekoha”, aspas da apresentação de Levi Pereira, coordenador da pós-graduação em Antropologia na Faculdade Intercultural Indígena da Universidade Federal da Grande Dourados.

A queima da Cinemateca, do Museu Nacional, dos servidores do CNPq, das florestas, do Pantanal, de inumeráveis travestis, essas ausências escancaradas que acumulam cinzas na boca do país. Borba Gato segue de pé, no máximo chamuscado, enquanto Galo e Gessica queimam em uma prisão que existe para intimidar o entregador antifascista e quem mais nele se reconhecer.

Contribuímos com sua luta com o texto afiado de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, no qual Tom Slee desnuda a questão. Tom, pesquisador de currículo renascentista, demonstra nesse livro de 2017 a cilada que Uber, Airbnb e outros venderam como cenário de fantasia onde você trabalharia apenas quando quisesse, compartilhando seu tempo e seu carro de forma livre, quando na verdade dava-se uma jogada vertiginosa do Vale do Silício para desregular o trabalho, ampliar a exploração e dominar mercados.

E aí vem um sujeito como Paulo Galo, que acha que pode fazer alguma coisa a respeito. Organizado e tático, realiza uma ação simbólica que finalmente arranha a supremacia simbólica do bandeirante no estado de São Paulo. A Revolução Periférica assumiu autoria da ação. Borba Gato é morto e nada sofreu.

Galo foi preso por crime de pensamento. Géssica, que não participou da ação, presa para deixar o filho desassistido. Presa para intimidar. Terror institucional injustificável, a polícia habilitada em sua truculência política e a certeza de que ninguém será preso pelo incêndio na Cinemateca.

A realidade não dá tréguas, tudo isso e a pandemia compõem o cenário atual, que só pode ser compreendido se considerarmos que BOLSONARO GENOCIDA, este o nome de nosso novo livro, Bolsonaro genocida. Editado por Tadeu Breda, a obra compila pesquisas que demonstram o protagonismo ativo deste governo sobre dois genocídios em curso: contra os povos indígenas e a favor da disseminação do coronavírus no Brasil.

Pois veja o que comprovam os professores Deisy Ventura e Fernando Aith, da Saúde Pública, e Rossana Rocha Reis, da Ciência Política, todos da USP: “A partir de abril de 2020, o governo federal passou a promover, como meio de resposta à pandemia, a imunidade coletiva (também dita ‘de rebanho’) por contágio. Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que a infecção naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos e de que a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença”.

Um país até o pescoço de cinzas, queima também o brasileiro. Um presidente que vê um rebanho no povo, que vê lenha para seu circo. Quem sabe, como os Kaiowá, aprenderemos usar cinzas como combustível.

“Muito embora as gerações dos homens adornados e as gerações das mulheres portadoras de taquara estejam predestinadas a serem acossadas por todo o mal, ainda assim, vós reunis inumeráveis restituidores da palavra, e os fazeis escutar nossas vozes, e os fazeis escutar nossos gritos; e, erguendo-nos das adjacências da morte, nos torna a levantar.”

Eis uma prece guarani registrada por Cadogan e traduzida por Bruno Martins no poderoso Do Corpo ao Pó.

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