Por Vladimir Safatle
Prefácio de O médico e o monstro

 

O médico e o monstro consegue o feito de expor, com clareza e originalidade, as múltiplas formas do esgotamento da ilusão latino-americana de construir um pacto civilizatório com o capitalismo e seu pretenso progresso. Sua crítica à realidade nacional brasileira parte da lembrança, tacitamente esquecida por muitos, de que o Brasil faz parte da América Latina, ou seja, de que suas escolhas progressistas na primeira metade do século XXI devem ser lidas no interior do amplo arco dos “progressismos” que tomaram conta do continente e foram saudados como forças de transformação social — saudação que não engana os autores deste livro. Ao contrário, seu objetivo é fornecer o diagnóstico implacável de governos identificados com a esquerda cuja função real foi tentar conter a lógica econômica de aprofundamento das fraturas sociais por meio de um movimento contraditório: permitir o desenvolvimento de suas dinâmicas de acumulação, deixando intactos os privilégios de classe.

Por isso o livro precisa criar um vocabulário contraditório para expor a contradição real que tais governos representaram. Para descobrirmos os sentidos de uma “contenção aceleracionista” que acaba por ampliar a desagregação social que procurava conter; de um “progressismo regressivo” que, na América Latina, não temeu flertar com a catástrofe (Venezuela), a tirania (Nicarágua) ou o messianismo (Brasil que espera o retorno de Lula); ou ainda de um “neoliberalismo inclusivo” que acreditava integrar classes vulneráveis através do consumo, enquanto criava uma legião de trabalhadoras e trabalhadores de renda degradada, precisamos compreender como a experiência latino-americana exige a criação de conceitos mais aptos à sua realidade efetiva — uma realidade que nada mais é do que a lente de aumento das dinâmicas de retorno da acumulação primitiva e da violência desrecalcada que sentimos em todos os espaços do capitalismo global.

Nesse sentido, ganha força a metáfora que dá forma a esse projeto, a saber, a figura do médico e do monstro que ocupam o mesmo corpo, até que o último acabe por desfigurar completamente o primeiro. Pois não é possível curar com a mesma lógica que nos fez adoecer. Nesta crítica consciente e avessa a qualquer tipo de conciliação extorquida, o livro lembra não apenas como o neoliberalismo autoritário que vemos com força no Brasil é fruto de um colapso do sistema de expectativas mobilizadas pelo progressismo local; antes, cabe principalmente recordar que não podemos deixar a crítica para depois. Melhor seria compreender que as respostas aos problemas efetivos pelos quais passa o continente e nosso país ainda não foram encontradas. E só se encontra respostas adequadas quando não se ilude mais com respostas falsas ou com médicos que acabam virando monstros.

 

Vladimir Safatle é professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e autor de A esquerda que não teme dizer seu nome (Três Estrelas, 2012), O circuito dos afetos (Cosac Naify, 2015) e Dar corpo ao impossível (Autêntica, 2019)

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