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O terror que se aproxima

Em artigo publicado nas vésperas das eleições que elegeram Jair Bolsonaro, o historiador Gabriel Ferreira Zacarias, autor de No espelho do terror, destaca o "terrorismo faça você mesmo" que caracteriza a ação de tiradores ao redor do mundo — inclusive no Brasil

Por Gabriel Ferreira Zacarias
Publicado originalmente na Revista Cult
26 out. 2018

 

O desprezo de Jair Bolsonaro e sua família pelas instituições republicanas e sua ignóbil admiração, tantas vezes proclamada, pelo abjeto torturador Carlos Ustra, indicam que o risco de um terrorismo de Estado paira novamente como ameaça real sobre a democracia brasileira. Muitos, porém, com grande otimismo ou cegueira, descartam essa ameaça como demasiado remota.

Se aceitarmos essa versão, que aposta na pouca fiabilidade do que diz o personagem bufão, não estaremos livres da ameaça de um terror cotidiano — como demonstram as dezenas de casos de violências contra minorias e opositores políticos registrados desde o primeiro turno da eleição. Gostaria de fazer uma breve reflexão sobre essa questão, com base em análises que fiz do terrorismo na Europa, e que compõem ensaio recentemente publicado.

O terrorismo contemporâneo, tal qual demonstram os casos recentes de ataques terroristas nos países do hemisfério norte, tem se caracterizado por algo que chamei de “terrorismo faça você mesmo”. No estudo que fiz sobre o problema do terrorismo na França, chamou atenção o caráter difuso do novo terrorismo, impulsionado por uma sociedade na qual os elos sociais se estabelecem prioritariamente por mediações virtuais e não mais por formas diretas de relações humanas.

Diferentemente do que ocorria no passado, hoje não é mais necessária a existência de grupos com organizações centralizadas que forneçam as condições materiais e estratégicas para a ação terrorista. As ações podem ser frutos de indivíduos que se identificam imaginariamente com os símbolos e valores de grupos maiores. Assim, parte dos atentados atribuídos ao Estado Islâmico na Europa foram cometidos por indivíduos nascidos no continente e que nunca haviam abandonado seu país de nascença, ou seja, que jamais tinham tido contato direto com a organização no Oriente Médio. Sua relação se dava pelas redes sociais de pró-jihadistas e seus atos eram impulsionados pela certeza de que seriam recompensados pela admiração nessas mesmas redes.

Portanto, a forma atual do terrorismo é justamente a de atos violentos isolados que não são diretamente ordenados pelas lideranças. Tudo que essas lideranças têm de fazer é fornecer um conjunto simbólico que justifique a violência, que a torne socialmente reconhecida, mesmo que no interior de uma coletividade delimitada. No caso do terrorismo islâmico, os valores reivindicados pelo fundamentalismo muçulmano em oposição àquilo que veem como um Ocidente degenerado tornam-se justificativas suficientes para que indivíduos disparem a esmo contra multidões ou joguem veículos sobre transeuntes. Ações que poderíamos nomear simples atos de loucura, e que não deixam de sê-lo, mas que aparecem como dotados de racionalidade para aqueles que se acreditam em uma espécie de “guerra santa”. A linha que separa o ato de loucura do ato de terrorismo tornou-se demasiado tênue, e por consequência tornou-se igualmente tênue a linha que separa o ato isolado do projeto coletivo.

Erich Fromm fazia uma distinção entre patologias e defeitos socialmente moldados, isto é, traços de caráter que não são mais percebidos como patológicos em dadas condições sociais. O que pode parecer como pura loucura em uma coletividade pode ter uma legitimidade em outra, e isso vale sobretudo para as manifestações de violência. O termo amok, que identificava uma prática ritual de violência cega em povos malásios, é usado hoje para designar os casos de violência incompreensíveis para a racionalidade ocidental, casos como o dos chamados “atiradores loucos”, que em explosões de raiva disparam a esmo sobre a multidão. Agora, parte desses atiradores loucos – ou em alguns casos, atropeladores loucos – são simplesmente designados como terroristas. A vazão de sua violência encontrou uma forma simbólica, que é fornecida pelo fundamentalismo, e que, portanto, não é mais descartada como simples loucura.

Se um líder político apregoa o uso livre da violência e nomeia insistentemente grupos que valem menos, está autorizando com falas e ações que indivíduos descarreguem sua raiva sobre esses mesmos grupos. É interessante notar aqui a semelhança que há nos alvos escolhidos pelo fundamentalismo islâmico e pelo fundamentalismo bolsonarista. Em ambos os casos, existe a veiculação de uma moral religiosa que condena a diversidade sexual e que se volta contra os setores progressistas da sociedade.

Quando dos ataques de novembro de 2015 em Paris, muitos se perguntaram por que um de seus alvos foi a região do Canal Saint Martin, frequentada por pessoas tolerantes à diversidade religiosa e comumente defensores da imigração, em vez de se voltar contra alvos associados ao Front National, partido conhecidamente xenófobo e anti-muçulmano. Acontece que tanto os correligionários do Front National quanto os partidários do Estado Islâmico manifestam incompreensão e ressentimento para com sociedades plurais e fundadas na diversidade, e veem como principais inimigos aqueles que lutam pela defesa de uma sociedade plural.

Algo semelhante ocorre hoje no Brasil, onde os meios culturais, artísticos e universitários estão entre os alvos prioritários do ressentimento bolsonarista, um ressentimento fundado em mentiras e desconhecimento, mas também na identificação correta de que esses espaços permanecem bastiões de luta contra qualquer fundamentalismo. Diversas universidades têm sido pichadas com ameaças e suásticas nas últimas semanas. Para ficar apenas no exemplo que me está mais próximo, na biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp, os dizeres associavam nazismo e school shooting, as suásticas sendo acompanhadas da ameaça “vai ter Columbine” (em referência ao histórico massacre escolar de 1999). O autor, já identificado, é mentalmente instável. Mas não deixa de ser relevante que tenha percebido uma articulação possível entre uma simbolização política e um gesto violento codificado e identificado com o ambiente de ensino.

A ausência de controle sobre os correligionários, que Bolsonaro evoca em sua defesa, não o isenta de responsabilidade sobre atos que tornam reais as ameaças contidas em suas falas. Se olharmos para o terrorismo contemporâneo, veremos que a falta de um controle em nada reduz os riscos da violência, a anuência simbólica sendo mais do que suficiente para dar aval ao terror. E lembremos que, caso Bolsonaro seja eleito, esta é apenas a perspectiva otimista.

 

Imagem: Andy Warhol, “Guns”, 1982.

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