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Hoje é domingo de sol e mais uma vez nos encontramos aqui, de pé entre destroços do capitalismo tardio. A coronacrise apenas gira a faca na espiral descendente de dissolução de valor que ora se apresenta inevitável.

Capitalismo em quarentena: notas sobre a crise global, lançamento da Elefante, é um livro a queima roupa, trabalho a oito mãos para dar sentido à crise que se desenrola. Chega aos leitores brasileiros enquanto Inês ainda não morreu e, portanto, pode se dar ao luxo de desejar intervir no debate público que definirá nosso destino comum.

O ponto de encontro dos autores é Anselm Jappe, filósofo alemão expoente da teoria crítica do valor, que tira o foco da luta de classes para entender a crise do capitalismo. A partir da derrocada do socialismo real e do desaparecimento da classe operária tradicional, o sistema se reconfigura para a automação e a economia digital, que concentra cada vez mais os recursos disponíveis. (Vide a fortuna de Jeff Bezos.)

Nosso sistema propõe valor abstrato a meia dúzia de acionistas e o desemprego a centenas de milhões, lastreado por entregas futuras não palpáveis e financiado por dívidas que financiam dívidas.

Tem tudo para dar errado, descrevem nossos quatro autores: Anselm Jappe, Gabriel Zacarias, Sandrine Aumercier e Clément Homs, um alemão, um brasileiro, um francês e uma francesa.

Filósofos, fazem parte de um grupo expandido de colaboradores que também mantém a revista Jaggernaut e a associação Crise et Critique, que dá origem ao nome da coleção que se inaugura na Elefante com o lançamento de Capitalismo em quarentena: Crise e Crítica.

Abaixa que é pedrada: “Os sanguinários sacerdotes astecas eram inofensivos e amigáveis em comparação aos burocratas do sacrifício ao fetiche do capital global no seu limite interno histórico”.

Esse petardo foi atirado pelo pensador alemão Robert Kurz em seu livro Dinheiro sem valor. Também está registrado na epígrafe de Capitalismo em quarentena; é a primeira frase que se lê na obra. Kurz, talvez o principal teórico da Teoria Critica do Valor, expôs a loucura do mundo financeiro, que foge para o futuro, especulando com a aposta de que será produzido.

Os autores formulam a ideia desta forma:

“Essa bolha se funda, portanto, na crença de que os Estados terão capacidade de arrecadação quando a economia, um dia, estiver em situação melhor do que o caos presente. Esses bilhões ‘vêm do futuro’, resumiu a otimista economista francesa Esther Duflo, vencedora do prêmio Nobel. A sociedade capitalista mundial acredita, assim, consumir seu próprio futuro, e funda as condições de existência de seu presente.”

Enquanto isso, Jim Morrison canta que the future is uncertain and the end is always near, o futuro é incerto e o fim está sempre aí — trecho de “Roadhouse Blues” escolhido como epígrafe de Capitalismo em quarentena. Chico Buarque cultivou linda roseira, mas veio a roda viva e carregou roseira pra lá. A vida é assim e a coronacrise escancara: futuro é aquilo que acontece enquanto a gente faz planilha.

Não podemos esquecer da crise ambiental cada vez mais saliente e suas consequências inevitáveis nas cadeias produtivas. Com tantas incertezas, tendem a zero as chances da economia se manter estável pelas próximas décadas. (A propósito, algumas ideias defendidas pelos livros do nosso Combo Alternativas 1 e 2 são contestadas pelos autores de Capitalismo em quarentena e estamos felizes em promover o debate entre diferentes títulos de nosso catálogo.)

Gabriel Zacarias é o elo brasileiro da obra. Assina o prefácio onde se leem estas inequívocas aspas: “Que o Estado é parte integrante da sociedade capitalista — e que não será jamais sua função criar as condições de superação dessa forma de sociedade — deveria ser, a essa altura, um fato assente. A falência crescente dos Estados, com o avanço da crise do sistema, faz com que as fronteiras entre legalidade e ilegalidade se esfumem, e que Estado e máfia se tornem indiscerníveis”.

Pensamos nestas frases tão contemporâneas enquanto passamos um café e consideramos as canalhices cotidianas de nosso Messias-em-chefe. Pensamos nelas enquanto consideramos Paulo Guedes, vestindo a fantasia de ministro da Economia, dizendo ao Brasil que apoiar pequenas empresas é perder dinheiro e que é preciso cobrar mais impostos sobre o livro — nada mais afim a um governo amigo do obscurantismo.

Então nos lembramos dos sacerdotes astecas, que precisavam de sangue fresco para garantir o nascimento do sol, e do mercado brasileiro, que exige a morte de milhares de nossos conterrâneos por dia — sem eufemismos. Neste domingo, já somamos oficialmente mais de 100 mil mortos pela “gripezinha” da covid-19. “E daí?”, diz-se em Brasília. “Vamos tocar a vida.” Resta saber qual vida.

O IBGE aponta que até julho mais de quinhentas mil empresas foram fechadas no Brasil. Setores inteiros, como cultura, turismo e aviação, estão destroçados, outros estrangulados. Demitidos ou falidos, um exército de precarizados de aplicativo se faz disponível para as empresas de tecnologia. De tão intensa, quase dá pra ver a exploração de mais-valor fluindo das bicicletas, carros e motocicletas às principais bolsas de valores do mundo pelas ondas da telefonia smartophônica.

Lê-se em Capitalismo em quarentena:

“Cada novo nível superior de produtividade necessita menos de trabalho vivo para uma quantidade crescente de riqueza material. Assim, o capitalismo, substituindo cada vez mais o trabalho humano em todos os setores da exploração empresarial pela automação industrial e pelo resto do package de racionalização da produtividade, solapa seus próprios fundamentos.”

 

Dissociação-valor

A contribuição da feminista Roswitha Sholz para a teoria crítica do valor é fundamental e define os rumos da publicação deste livro. A escritora alemã demonstrou que a cisão dos papéis de gênero é fundamental para a produção do valor abstrato necessário à reprodução do capital.

O acúmulo financeiro e o trabalho tido como masculino só é possível pela dissociação do trabalho de suporte e cuidado, exercido prioritariamente pelas mulheres. O capitalismo é formado, pois, pela divisão complementar entre as atividades que produzem e as que não produzem valor abstrato — mas que são essenciais para a sua produção.

Assim Roswitha desenvolve a teoria da dissociação-valor, que está na base deste  Capitalismo em quarentena. O catálogo feminista da Elefante foi fundamental na escolha da editora para a publicação desta obra — e de toda a coleção Crise & Crítica.

Anselm Jappe será o próximo: publicaremos seu A sociedade autofágica, que descreve o desenvolvimento complementar do capitalismo fetichista com seus sujeitos narcísicos, individualistas, fadados a devorar a si mesmos e a todos os outros. O livro já está traduzido e revisado. Já tem capa e tudo. Sairá no começo de 2021, no máximo. Aguardem ;)

A tradução de Capitalismo em quarentena merece nota, pois foi uma empreitada coletiva e a distância, que contou com a participação fundamental de Pedro Pereira Barroso, João Gaspar, Frederico Lyra, Cecília Pires, Pedro Henrique Resende, Rachel Pach e Robson J. F. de Oliveira.

A vocês e aos demais que resistem, obrigado.

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