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Para abrir o coração

Em primeiro livro de sua trilogia sobre o amor, bell hooks defende que amar é um ato político revolucionário. Confira a resenha de Tudo sobre o amor, por Renato Noguera.

Por Renato Noguera
Publicado na Quatro Cinco Um

 

Vale a pena insistir na tática de fazer uma resenha começando pela apresentação da autora? Quando se trata de bell hooks, nunca é demais dizer algo a seu respeito. Nascida em 1952 em Hopkinsville, uma pequena cidade do Kentucky, nos Estados Unidos, ela foi registrada como Gloria Jean Watkins, mas depois retomou o nome de sua bisavó materna, Bell Blair Hooks, assumindo-o com letras minúsculas. Ela passou pelas Universidades Stanford, Wisconsin-Madison e da Califórnia, durante a graduação, mestrado e doutorado, respectivamente.

A partir dos estudos interseccionais, o feminismo aparece em seus escritos como uma maneira de enfrentar os efeitos do patriarcado. Seus trabalhos articulam raça, gênero e classe; Frantz Fanon e Paulo Freire são alguns dos autores que dialogam com suas teses contra as mais diversas formas de opressão que o racismo, o patriarcado e a exploração capitalista produzem. O primeiro livro da sua trilogia sobre o amor, Tudo sobre o amor: novas perspectivas — sucedido por Salvation: Black People and Love (Salvação: pessoas negras e amor) (2001) e Communion: The Female Search for Love (Comunhão: a busca feminina pelo amor) (2002) —, sai agora no Brasil pela editora Elefante, com tradução de Stephanie Borges, e é uma convocação política para a revolução.

Para além dos clichês

A autora faz um convite para que possamos abrir nosso coração. Vale uma ressalva quanto à expressão “abrir o coração”, geralmente lida como um clichê. Para bell hooks, trata-se de uma prática, uma forma de agir no mundo. Ou seja, o livro insiste que amar é um ato. “Esse ato de abrir o coração nos possibilita receber a cura que nos é oferecida por aqueles que cuidam.” A cura e o cuidado integram um posicionamento político, o que desfaz os significados equívocos do “amor” apenas como um sentimento romântico, experimentado mais pela sua ausência do que pela sua presença. Boa parte da cultura popular, nas canções, nos romances ou nos filmes, apresenta o amor sob a ótica de um romantismo idealizado e lança luz sobre corações despedaçados.

Tudo sobre o amor propõe um deslocamento que começa com uma definição que passa pela leitura de Erich Fromm, um autor que permanece com pouco prestígio acadêmico. No livro, hooks define o amor como um empenho para o próprio crescimento espiritual e o de outra pessoa. Esta é a lição do primeiro capítulo: definir o amor para muito além dos clichês da cultura de consumo. A compreensão do amor como o ato de pôr e manter o coração aberto é um compromisso político com o cuidado de si e dos outros, agindo em prol da transformação.

Os argumentos do ensaio apontam que não vale a pena viver sem conhecer o amor, advertindo que a sociedade é marcada pelo racismo, pelo sexismo e pelo classismo, que são expressões de um desejo de dominar e controlar, impedimentos severos para que os corações se abram em busca da vontade de autoconhecimento, de crescimento espiritual e de apoiar outras pessoas que fazem o mesmo percurso. Em uma sociedade onde o patriarcado e o racismo são estruturais e a exploração capitalista rege as relações de produção, o amor dificilmente consegue sobreviver e prosperar. O encantamento pelo poder e a paralisia provocada pelo medo são obstáculos terríveis para o nosso desejo de amar.

bell hooks problematiza como autores homens dominam a cena das teorias sobre o amor

Na condição de crítica cultural, bell hooks observa que a autoridade das mulheres quando o assunto é amor fica restrita aos romances e problematiza como autores homens (brancos, heterossexuais e ricos) dominam a cena das teorias sobre o amor, apontando os perigos de vincular a experiência amorosa à fantasia. Ela também faz uma revisão bibliográfica sobre o amor e identifica que poucos trabalhos destacam como o patriarcado é um impedimento para o desejo de amar, reduzindo-o a um sentimento idealizado.

A partir da análise de que a violência e a mentira são próprias da cultura patriarcal, o amor parece não encontrar espaço num cenário de embrutecimento. A prática do amor não é compatível com o controle e o desejo de poder. O patriarcado ensina os homens a mentir para manterem as mulheres subordinadas, o que implica falta de conexões verdadeiras. A feminilidade e a masculinidade patriarcais implicam não estarmos aptos para amar. Numa estrutura social repleta de mentiras, o segredo funciona como mais uma arma de destruição. O que hooks argumenta é que o cultivo da privacidade não é a mesma coisa que manter “segredos”.

A autora destaca como precisamos combater o patriarcado, ensinando às crianças como é importante dizer a verdade e não viver no modelo “mentira-segredo”. A mentira e o segredo fazem parte de um traquejo social que nos diz que, para manter o bem-estar, o melhor é conservar as aparências e não reclamar das dores, tampouco pedir ou oferecer ajuda. Tudo isso é estranho ao amor. O livro explica que o desejo desenfreado e a mentira fortalecem a publicidade predatória e o consumismo, criando condições inóspitas para amar.

Numa cultura centrada na produção de mercadorias a fome por amor é imensa — ver as soluções como produtos é completamente contrário à experiência amorosa. O ato de amar passa longe de algo que pode ser comercializado. Uma sociedade regida pela dominação e pelo controle dificulta a experiência do amor. Por isso, é preciso aprender. A ideia de que o aprendizado funciona exclusivamente de modo intelectual está implícita na separação entre razão e emoção. O amor é uma forma de enfrentamento à exploração em qualquer modalidade.

O desafio do amor está justamente em como enfrentamos as várias formas de discriminação que têm, entre seus efeitos, destruir a nossa capacidade de amar. Daí, Tudo sobre o amor proclama a necessidade de autorresponsabilidade mesmo diante do racismo, do sexismo e da homofobia. As injustiças institucionalizadas independem de nossas vontades, mas podemos escolher como lidar com elas. À medida que o amor impõe uma ética, o nosso empenho será inventar nossa vida e a das pessoas que amamos.

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