Por Mariléa de Almeida
Publicado no Uol

 

Na última sexta-feira, 08 de abril, o programa de TV Globo Repórter, produzido pela emissora Rede Globo, exibiu um especial sobre o Vale do Paraíba, no sul do estado do Rio de Janeiro, enfatizando que a região, depois de décadas de abandono, está vivenciando uma espécie de redescoberta de suas terras. Essa situação estaria sendo impulsionada pela chegada de novos moradores oriundos dos centros urbanos dispostos a empreender no setor de serviços (turismo e hotelaria), bem como no ramo da agricultura sustentável.

No século 19, a produção de café transformou o Vale numa região que simbolizava o poder e a riqueza do Império. A província do Rio de Janeiro dominou a produção cafeeira ao longo do século, sendo suplantada apenas em 1890 pelo Oeste Paulista. De certa forma, o programa busca recontar a pujança econômica da região. Apesar de fazer referência às práticas negras, como o jongo e a folia de reis, reduz a existência negra na região à reminiscência cultural e desconsidera a presença longeva do campesinato negro. Não por acaso, a reportagem invisibiliza os territórios das comunidades quilombolas da região. Talvez porque suas trajetórias expõem as intrínsecas conexões entre racismo estrutural e os projetos de desenvolvimento para região, voltados para fortalecimento do turismo com foco nas antigas fazendas de café.

 

A ilegalidade do tráfico e acumulação de riqueza

A abordagem do programa sobre o passado escravista mantém uma postura nostálgica sobre a riqueza dos fazendeiros do século 19. Conforme detalha o historiador Felipe Alvarenga em artigo publicado na coluna Nossas Histórias no portal Geledés, trata-se de uma representação bucólica disseminada no Vale do Paraíba fluminense, que foi construída em torno do mito de que os barões do café seriam bons lavradores por administrarem suas propriedades de maneira harmoniosa.

Além de não mencionar as violências, o que o Globo Repórter não contou é que o acúmulo de riquezas ocorreu no contexto da ilegalidade do tráfico negreiro transatlântico. É isso que mostra o historiador Ricardo Henrique Salles (1950-2021). No livro “O vale era escravo”, que trata do município de Vassouras, ele detalha que a acumulação de riquezas nas mãos dos grandes senhores ocorre, entre 1831 e 1850, quando o comércio transatlântico de escravizados já estava proibido. Nesse período, a região recebeu uma entrada maciça de africanos de origem banto e que a província do Rio de Janeiro concentrava parte expressiva dos últimos escravizados no país, libertados em 1888.

A lei imperial de 7 de novembro de 1831 foi a primeira lei nacional a proibir o tráfico de escravos, definindo que todos os escravizados africanos importados depois dessa legislação deveriam ser considerados livres. Conhecida como “lei para inglês ver”, pelo fato de ter sido criada sob pressão inglesa e também pelo volumoso contrabando das décadas seguintes. Na prática, o Cais do Valongo, até então porta de entrada oficial do tráfico de africanos, foi fechado, mas áreas do litoral distantes da corte começaram a ser usadas para o desembarque ilegal.

Nesse sentido, o avanço cafeeiro dependeu de acordos políticos que garantissem a segurança institucional para aqueles proprietários que dependiam de escravizados e recorriam ao tráfico ilegal. Em 1836, a Câmara de Valença, um dos municípios centrais na produção cafeeira da região, enviou a seguinte petição ao Parlamento Imperial, publicada no jornal “O Sete d’abril”:

Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação. A Câmara Municipal da Vila de Valença, tendo-vos já pedido providência sobre a lei de 7 de Novembro de 1831, vem hoje novamente lembrar-vos que lanceis vossas vistas sobre a mais respeitável e interessante porção da população do Império, que a maior parte está relacionada à infração da mencionada lei, porque a necessidade a ela os levou; cumpre portanto a Vós, Augustos e Digníssimos Senhores evitar a explosão que nos ameaça, derrogando [anulando] em todas as suas partes a dita lei de 7 de Novembro de 1831, porque sua execução é impraticável e ela, longe de trazer benefício a vossos concidadãos, os insinua a imoralidade; sua derrogação [anulação] é de reconhecida utilidade, e sua execução seria concitar [estimular] os Povos a uma rebelião e formal desobediência, por que essa maioria respeitável de Vossos concidadãos de qualquer das formas procurará com todas as suas forças conservar intactas suas fortunas, adquiridas com tanta fadiga e suores.

As fortunas do Vale foram construídas em meio a fadigas e suores relacionadas ao tráfico ilegal de escravos. A acumulação de capitais estava centrada nas mãos de grandes negociantes residentes no Rio de Janeiro, que monopolizavam o tráfico transatlântico e investiam em larga escala na produção escravista.

 

O campesinato negro e a emergência do turismo

No período que antecede a abolição da escravidão, ocorre um significativo esvaziamento econômico do Vale. Naquele contexto, as comunidades negras viviam com parte da família ainda escravizada e uma outra habitando próximo das fazendas na condição de roceiros livres. O historiador Flávio dos Santos Gomes, no “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, afirma que no pós-abolição a movimentação dos libertos e dos descendentes dos quilombolas ampliou o campesinato negro, organizado em comunidades que partilhavam relações de parentesco, culturas ancestrais e usos dos territórios.

No Rio de Janeiro, ao longo do século 20, esses grupos enfrentaram inúmeros constrangimentos para permanecer em seus territórios, mas, a partir da década de 1970, as dificuldades se agigantam. Nesse período, emerge um modelo de desenvolvimento que define o turismo como vocação principal das terras fluminenses. Trata-se de um processo de desagriculturalização, compreendido pela marginalização da agricultura familiar vinculada à produção de subsistência.

A historiadora Ana Maria Motta Ribeiro, no “Dicionário da Terra” descreve que o fenômeno vinha ocorrendo desde a fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro (1975) e que, apesar de não apresentar uma linearidade e homogeneidade, foi definido por meio de planejamentos e incentivos governamentais para o turismo como atividade predominante do estado do Rio de Janeiro em face de outras virtudes da região, como a agricultura familiar. Os efeitos visíveis deste modelo econômico são a concentração fundiária, a urbanização desordenada do espaço rural por conta da especulação imobiliária, a expulsão dos trabalhadores do campo, a ampliação dos processos de favelização e a ocupação de áreas inadequadas para a moradia.

Esse processo histórico atravessa a formação das 52 comunidades quilombolas mapeadas pela Associação das Comunidades Quilombolas do Estado do Rio de Janeiro – Aquilerj. Com a emergência do direito territorial na Constituição Federal de 1988, inúmeras comunidades remanescentes de quilombos, situadas em áreas rurais e urbanas, passaram a reivindicar a posse de seus territórios tradicionalmente ocupados.

Elas enfrentam grupos ligados à especulação imobiliária e aos empreendimentos turísticos, bem como a inexistência de subsídios públicos que garantam a continuidade de suas práticas campesinas. A falta de direitos básicos como saneamento, além do acesso a políticas públicas e internet de qualidade são desafios a serem superados. Várias comunidades lidam com processos de grilagem e de especulação imobiliária que ameaçam a permanência em seus territórios, colocando em risco a continuidade de seus modos de vida.

Bia Nunes, presidenta da Aquilerj, considera que no processo de luta pela terra, a educação torna-se um elemento principal porque favorece que o povo tenha conhecimento da sua história e identidade. Trata-se de um ato de reparação que, conforme o filósofo Mbembe, “para construir este mundo que é nosso, será preciso restituir, aqueles e aquelas que passaram por processos de abstração e coisificação na história, parte de humanidade que lhe foi roubada.” Quando deixa de fora aspectos históricos relevantes, uma produção perde a oportunidade de promover reparação histórica.

 

O que diz a Globo: O ‘Globo Repórter’ sobre as novas riquezas do Vale do Café, no sul do Estado do Rio, contou a história de personagens, como os professores Silvana Nunes e Antonio Carlos da Silva, que têm como propósito de vida dar visibilidade aos feitos da população negra no período da escravidão. Na entrevista, o professor Antonio Carlos fala, de forma crítica, sobre o comércio de pessoas escravizadas. O programa ressaltou o legado deixado pelos negros e buscou ainda dar protagonismo a quem lutou por liberdade na região, como Mariana Crioula, além de exaltar manifestações culturais, a exemplo da Folia de Reis, também liderada no local por pessoas negras. Além de lançar um olhar revisitando a história e exaltando personagens que, muitas vezes, são desconhecidas, o ‘Globo Repórter’ se propôs a mostrar também novas formas de geração de renda, o plantio de café sem agressão ao meio ambiente, além da arte e da cultura como meio de desenvolvimento do vale.

 

Na imagem: Foto de 1885 registra a saída de pessoas escravizadas para a colheita no Vale do Paraíba, na região sul do Rio de Janeiro. Crédito: Marc Ferrez/Colección Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles. 

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