Sem direitos da natureza, a liberdade é uma ilusão

"Em meio ao atual colapso climático e ecológico, é hora de entender a Natureza como condição básica de nossa existência e, portanto, também como base dos direitos de liberdade coletiva e individual."

Por Alberto Acosta
Publicado no Rebelión

 

“A plena incorporação da natureza como sujeito ao Direito se realizará, sem dúvida, apenas gradualmente; por enquanto, basta estabelecê-la como uma meta que indicará a direção que devemos seguir.”
– Godofredo Stutzin (1984), ecologista chileno [1917-2010]

 

Os primeiros textos propostos sobre os Direitos da Natureza na Convenção Constitucional do Chile não foram aprovados. Há várias razões e alguma insensatez para essa rejeição. O que importa, sem aprofundar a análise, é que o debate seja levantado e que a história se repete. Lembremos que a emancipação dos escravizados ou a extensão dos direitos plenos aos indígenas, mulheres e crianças foram rejeitadas em seu tempo como absurdas. Basta lembrar que quando os escravizados foram “libertados” em vários países de Nossa América, não faltaram aqueles que se queixaram das “perdas” sofridas por seus “donos”, cuja “liberdade” se restringia a comercializá-los, usá-los, explorá-los…

Esses Direitos, aprovados pela primeira e por enquanto única vez na Constituição do Equador em 2008, se estendem por diversas áreas. No caso equatoriano, os Direitos da Natureza são registrados como parte de uma miscigenação emancipatória que gerou um “híbrido jurídico”, onde se recuperam elementos de todas as culturas indígenas – e também algumas “ocidentais” – aparentadas pela vida, que entendem as muitas razões pelas quais a Mãe Terra ou Pacha Mama, como espaço territorial, cultural e espiritual, não pode ser motivo de mercantilização ou exclusão. Simultaneamente, na Assembleia Constituinte do Equador, influenciaram todas as lutas de vários grupos da sociedade que defendiam a Natureza. Aquele foi um momento de grande criação que se insere no processo de emancipação da Humanidade, que reivindica permanentemente o direito a ter direitos.

Quando falamos de Direitos da Natureza, deve-se notar que o centro é colocado na Natureza, que obviamente inclui o ser humano. A Natureza vale por si mesma, independentemente dos usos que os humanos lhe derem, implicando uma visão biocêntrica. Esses direitos não defendem uma natureza intocada que leve a, por exemplo, deixarmos de ter plantações, pesca ou pecuária. O que eles defendem é que se mantenham os sistemas e conjuntos de vida. Sua atenção está voltada para os ecossistemas, para as comunidades, e não para os indivíduos, sem tolerar em nenhum caso a tortura de qualquer ser vivo. Você pode comer carne, peixe e grãos, por exemplo, desde que garanta que existam ecossistemas funcionando com suas espécies nativas.

Mas devemos ir mais longe. Não se trata de buscar um equilíbrio entre economia, sociedade e ecologia que de outra forma seria impossível usando o capital como eixo articulador oculto. O ser humano e suas necessidades devem sempre prevalecer – ainda mais sobre o capital –, mas nunca se opondo à harmonia da Natureza, base fundamental de qualquer existência. E essa discussão tem história.

Há uma longa lista daqueles que tentaram, durante séculos, compreender e recompor a relação entre os seres humanos e a Natureza, e que propuseram uma mudança radical na visão da dominação da Mãe Terra pelos seres humanos.

Há visões e práticas sustentáveis ​​que se perdem no tempo. Não se encontram nos arquivos da Modernidade. Aqui aparecem muitas comunidades indígenas – portadoras de uma longa memória – que em todo o mundo têm demonstrado que os seres humanos podem organizar modos de vida sustentáveis. Sua ligação com Pacha Mama ou Mãe Terra é mais do que uma metáfora. Mas há outros exemplos, também poderosos.

O pensamento vigoroso de Baruch de Spinoza (1632-1677), judeu sefardita de origem espanhola, é fundamental nesse sentido. Quando escreveu “Deus sive natura”, compreendia que “Deus é Natureza”, e falava de uma Natureza ativa: “natura naturans”, quer dizer, literalmente, uma “natureza naturanda”. A natureza – para ele – não era passiva nem criada, ou seja, não era uma “natureza natural”. Seu pensamento influenciou muitas outras pessoas e processos, como Hans-Carl von Carlowitz, que primeiro cunhou o termo “sustentabilidade” em 1713, ou mais tarde o grande pesquisador Alexander von Humboldt.

E nessa linha, a partir de reflexões científicas, pode-se citar James Lovelock e Lynn Margulis, bem como Elizabeth Sahtouris e José Lutzenberg, entre tantos outros, que já caracterizavam a Terra na década de 1970 como um superorganismo vivo, que merece respeito e cuidado: por isso foi chamada de Gaia, nome da mitologia grega para definir a vitalidade da própria Terra. Também poderíamos recordar alguns pensadores que, com várias abordagens, contribuíram para que a humanidade tomasse consciência de que a Terra é uma só – antes de termos as primeiras fotografias da Terra tiradas do espaço –, como Nicolau Copérnico, Nikolaus von Kues ou Nicolau de Cusa  (Cusanus), Johannes Kepler, John Evelyn, Carl Nilsson Linneaus, Johann Wolfgang von Goethe…

Um pouco mais próximo no tempo, cabe mencionar a valiosa contribuição do jurista Christopher Stone: Should Trees Have Standing? (1972), considerado por Jörg Leimbacher como o “pai dos Direitos da Natureza”. Cabe destacar também as recentes contribuições jurídicas vindas da América Latina com Raúl Eugenio Zaffaroni, Ramiro Ávila Santamaría e Agustin Grijalva; da África, do jurista sul-africano Comac Cullinam, para citar exemplos de uma lista que cresce rapidamente. Também não podemos esquecer as grandes contribuições de Vandana Shiva ou Yayo Herrero, para citar outros dois nomes. Aqui caberiam as contribuições igualmente valiosas de Albert Schweizer, Godofredo Stutzin, Aldo Leopold, Peter Saladin, Jörg Leimbacher…

Como destaca Leonardo Boff, nessas visões é possível reconhecer as inter-retro-conexões transversais entre todos os seres: tudo tem a ver com tudo, em todos os pontos e em todas as circunstâncias; essa é a relacionalidade do mundo indígena, também reconhecida na Encíclica Laudato Si, que tem como semente germinal Francisco de Assis.

Mesmo no campo literário há contribuições relevantes. Um exemplo: Italo Calvino, no século XX, em seu romance O barão nas árvores (1957), conta como Cosme Chuvasco de Rondó decide passar a vida inteira empoleirado em árvores. E a partir daí, propõe os Direitos da Natureza para uma nova constituição, neste romance ambientado durante a Revolução Francesa.

Em meio ao atual colapso climático e ecológico, é hora de entender a Natureza como condição básica de nossa existência e, portanto, também como base dos direitos de liberdade coletiva e individual. Assim como a liberdade individual só pode ser exercida no âmbito dos mesmos direitos que outros seres humanos, a liberdade individual e coletiva só pode ser exercida no âmbito dos Direitos da Natureza. O professor alemão Klaus Bosselmann conclui categoricamente: “Sem os Direitos da Natureza, a liberdade é uma ilusão”.

Na prática legal, isso significa que a partir de agora não há mais nenhum direito de explorar a Natureza e muito menos de destruí-la, mas apenas um direito de uso ecologicamente sustentável. As leis humanas, então, devem estar de acordo com as leis da Natureza. E, além disso, tenhamos em mente que, na realidade, é a Natureza que nos dá o direito de existir aos seres humanos, e que ela, em sua busca permanente de equilíbrio, não erra.

A compreensão desse ponto exige uma virada copernicana na esfera jurídica, econômica, social e política. O direito a ter direitos exige sempre um esforço político para mudar aquelas normas que negam esses direitos e enfrentar os grupos de poder que buscam proteger seus privilégios sustentados na exploração do homem e da natureza. A luta continua. Continuamos avançando com a confiança de que o Chile consolidará este processo emancipatório.

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