Ter governantes negros é suficiente?

Em #VidasNegrasImportam e libertação negra, Keeanga-Yamahtta Taylor reconstrói a formação do racismo estrutural nos Estados Unidos e argumenta que a mera absorção de pessoas negras por uma institucionalidade supremacista branca não acabará com a violência e a exclusão racial

Por Gabriel Rocha Gaspar

 

Vidas negras importam. Você já parou para pensar no quanto essa afirmação é absurda? Ou melhor, no quanto é absurdo que seja necessário dizer isso? Pior ainda: no fato de existir oposição a esse slogan triste de tão óbvio? Em #VidasNegrasImportam e libertação negra, pois, Keaanga-Yamahtta Taylor faz uma genealogia do absurdo, demonstrando como os Estados Unidos — e, apartadas as particularidades conjunturais, qualquer sociedade forjada na violência escravagista — chegaram a este presente insólito.

Taylor analisa a relação dialética entre o movimento negro e o establishment político estadunidense para mostrar como o racismo foi sendo gradualmente maquiado, acomodando-se ao poder até o ponto de a prática necropolítica seguir à revelia da segregação institucional. Alinhada à leitura dos mais radicais militantes dos anos 1960, como Stokely Carmichael e Angela Davis, a autora denuncia a forma como a luta pela liberdade negra na metade do século XX foi estrategicamente comprimida na caixa dos direitos civis. Conforme esses direitos foram sendo garantidos pela institucionalidade, neutralizou-se a demanda revolucionária: apagou-se o fogo profético negro, como diria Cornel West.

Para cada direito conquistado, um dispositivo de neutralização desse mesmo direito foi criado. O povo preto ganhou acesso formal ao voto, mas mecanismos perversos de supressão se impuseram. Pessoas negras passaram a ocupar cargos administrativos, mas, em típico arranjo colonial, tiveram de ceder à cooptação, convertendo-se na black face do white power. Tornou-se consensual a inexistência das raças biológicas, mas apenas como forma de mascarar a aplicação sociológica perversa da discriminação racial. Em suma, o racismo institucional descarado deu lugar ao cinismo. E, entre os linchamentos de Emmett Till, em 1955, e de George Floyd, em 2020, pouca coisa mudou.

Em um de seus mais brilhantes capítulos, Keeanga mostra como, sob a gestão liberal de Barack Obama, o discurso da representatividade finalmente transbordou de vez, dando à luz o #BlackLivesMatter. Ainda que seja um movimento reativo, ele carrega o embrião do poderoso diagnóstico de que, enquanto o poder não mudar radicalmente, tingi-lo de preto não freará o genocídio. Nossa liberdade não cabe na democracia burguesa; nada menos que uma revolução proletária, preta, socialista, feminista, queer, poderá fazer com que vidas negras de fato importem.

Ao escancarar o cinismo que acoberta a manutenção do racismo, este livro se torna uma ferramenta de transformação. Se o Black Lives Matter é o barco que navega os mares da mudança no coração do Império, #VidasNegrasImportam e libertação negra é a bússola.

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