Por Mariléa de Almeida
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Para começar a conversa

Sem sombra de dúvida, bell hooks é uma das mais importantes intelectuais da atualidade. Desde a década de 1980 até os dias atuais, ela já publicou mais de 30 livros que, por meio de uma linguagem acessível, expressam um pensamento complexo avesso às formulações simplistas. Uma produção que denuncia, sem subterfúgios, as atávicas conexões entre imperialismo econômico, supremacia branca e o patriarcado. Suas obras são referências incontornáveis para adensarmos nossa compreensão de como as dinâmicas de raça, classe e gênero se exprimem nas práticas culturais, acadêmicas, subjetivas e cotidianas. Diante de uma pensadora tão singular, perguntamos: de que forma os temas de suas análises e seu estilo narrativo foram sendo construídos em sua trajetória intelectual?

Sem a pretensão de esgotar essa questão, o artigo percorre, de forma panorâmica a trajetória de bell hooks, especialmente no que tange à sua vida acadêmica e intelectual. Para tanto, o texto está dividido em três partes. A primeira descreve aspectos biográficos, focalizando sua relação com o conhecimento, espaço escolar e o ambiente universitário. A segunda articula a obra de bell hooks com a emergência, nas décadas de 1970 e 1980, dos feminismos negros. A terceira parte apresenta temas e abordagens que surgem de forma recorrente em seus livros.

 

Trajetória escolar e acadêmica

Gloria Jean Watkins é o nome de batismo de bell hooks. Ela nasceu em 1952, em Hopkinsville, uma pequena cidade segregada do estado de Kentucky, no sul dos Estados Unidos. Ela cresceu em uma família de classe trabalhadora: seu pai era zelador e sua mãe dona de casa. Além dos pais, hooks foi criada com cinco irmãs e um irmão. A escolha do pseudônimo bell hooks é uma homenagem à sua bisavó, Bell Blair Hooks, conhecida dentro família pela sua coragem de dizer a verdade. Uma mulher de língua afiada, sem papas na língua. Quando bell hooks começa escrever, ela usa o nome da bisavó como uma forma de reivindicar esse legado, já que desde a infância hooks também gostava de expressar suas ideias de forma contundente.

Nascer mulher negra no sul do Estados Unidos, na década de 1950, em um contexto de segregação racial, numa família de domínio patriarcal, significa vir ao mundo em um tempo e espaço cujas oportunidades de existência para mulheres negras estavam limitadas ao trabalho doméstico (seja dentro e fora de casa), casamento e filhos. As garotas que gostavam de ler e estudar, como hooks, tinham seu destino profissional mais ou menos selado: seriam professoras. A esse respeito, em Wounds of Paisson: a writing life (1997), livro de memória onde bell hooks narra a relação amorosa com a escrita, ela conta que ser professora naquele contexto significava optar por uma vida celibatária. O magistério era visto como algo quase sacerdotal. A mulher que decidia pela carreira de professora renunciava a vida amorosa e sexual. De um modo geral, as meninas não eram estimuladas a desenvolver o intelecto e a liberdade, já que conforme afirmava o pai de bell hooks “os homens não gostam de mulheres que falam o que pensam” (HOOKS,1997). Nesse ambiente familiar, descrito por ela como um espaço de domínio patriarcal, hooks costumava ser punida por ser uma menina que expressava suas opiniões e ideias.

Para construir a minha voz eu tinha que falar — e falar foi o que fiz. — lançando- me para dentro e para fora de conversas e diálogos de gente grande, respondendo a perguntas que não eram dirigidas a mim, fazendo perguntas sem-fim, discursando. Nem preciso dizer que as punições para esses atos discursivos eram infinitas. Elas tinham o propósito de silenciar — a criança, mais particularmente a menina. Se eu fosse um menino, eles teriam me encorajado a falar, acreditando que assim algum dia, eu poderia ser chamado para pregar. (HOOKS, 2019, p. 32)

Se no espaço familiar seu intelecto era lido com desconfiança, foi na escola segregada onde estudou que bell hooks encontrou professoras negras que valorizavam sua inteligência. Ela conta que para aquelas professoras, a boa educação não estava ligada à mera transmissão de conteúdos e a preparação dos estudantes para o exercício de uma profissão. Ao contrário, hooks experimentou uma formação que incentivava simultaneamente o intelecto e o compromisso com a justiça social, especialmente a igualdade racial. (HOOKS, 2020, p. 23)

Naquela época, ir à escola era pura alegria. Eu adorava ser aluna. Adorava aprender. A escola era o lugar do êxtase — do prazer e do perigo. Ser transformada por ideias novas era puro prazer” (HOOKS, 2013, p.11)

Com efeito, a partir da adolescência a relação de bell hooks com a escola se transforma. O ambiente deixa ser um lugar onde ela se sente potente. Isso ocorreu durante o high school, correspondente ao ensino médio no Brasil. Foi quando ela passa frequentar uma escola dessegregada. O que isso significa?

Nos Estados Unidos, entre 1876 e 1965, nos estados do Sul existiam as chamadas “Jim Crow”, leis que oficializaram o sistema de segregação racial, separando negros e brancos nos assentos de trens, nos bebedouros e nas escolas. Era chamada a doutrina do separado, porém “igual”. Tudo isso servia para manter as pessoas negras em posições subordinadas, negando-lhes acesso a níveis razoáveis de educação e emprego. A luta pelos direitos civis, que teve início nos anos 1950, protagonizada pelo movimento negro colocou fim nas legislações segregacionistas, o que levou a implantação de uma série de ações afirmativas para população negra estadunidense, inclusive no campo da educação. (CASHMORE, 2000, p.505–508).

No contexto dessas transformações, bell hooks vai para o high school em uma escola dessegregada. Na prática, os alunos negros passaram a frequentar escolas predominantemente brancas e atravessadas pelo racismo sistêmico. Esse período é narrado por hooks como uma época de profunda tristeza.

Durante a profunda tristeza dos meus anos de adolescente, era frequente eu me ver em uma aula de História, no fim da tarde, chorando silenciosamente. Ao meu redor, estudantes e professor fingiam não notar. O ensino médio havia sido dessegregado recentemente. Para alcançar esse objetivo, estudantes negros eram forçados a se levantar mais cedo que o de costume e ir de ônibus para escola “branca”, onde seríamos amontoados no ginásio e obrigados a esperar que os estudantes brancos chegassem e entrassem na escola primeiro. Pela lógica da supremacia branca, era assim que se mantinha a paz. […] Não era de se espantar, então, que, em uma sala de aula só de pessoas brancas, com apenas dois estudantes negros, ninguém quisesse reconhecer meus sentimentos, meu sofrimento. (HOOKS, 2020, p. 128–129)

A escola transforma-se em lugar que minava sua autoestima intelectual.

Em 1970, aos dezoito anos de idade, hooks ingressa na Universidade de Stanford, na Califórnia, para estudar Língua Inglesa. No espaço universitário, hooks novamente encontra um ambiente hostil para pessoas negras, especialmente para as mulheres, conforme detalha:

Precisamos de mais relatos autobiográficos da primeira geração de estudantes negros que ingressaram em escolas e universidades predominante brancas. Imagine como é ter aulas com um professor que não acredita que você é totalmente humano. Imagine como é ter aulas com professores que acreditam pertencer a uma raça superior e sentem que não deveriam ter de se rebaixar dando aulas para estudantes que eles consideram incapazes de aprender. Em geral, sabíamos quais professores brancos nos odiavam e evitávamos suas aulas, a menos que elas fossem absolutamente imprescindíveis. Como a maioria de nós chegou à faculdade na esteira de uma poderosa luta antirracista por direitos civis, sabíamos que encontraríamos aliados nessa luta — e, de fato, encontramos. Notadamente, o machismo confesso de meus professores era mais duro que seu racismo velado. (HOOKS, 2020, p. 24)

No auge do movimento feminista, em 1973, bell hooks finaliza a graduação e, em 1976, conclui o mestrado em Inglês na Universidade Wisconsin-Madison. Em 1983, após anos lecionando e escrevendo, finda seu doutorado pela Universidade da Califórnia em Literatura, com a tese intitulada Keeping a hold on life: reading Toni Morrison’s fiction, trabalho sobre obra da escritora Toni Morrison. Já como professora universitária, hooks atuou em várias instituições como: Universidade do Sul da Califórnia, Universidade da Califórnia, Yale, Orbelim College, City College de Nova York, entre outras.

Entre os anos 1970 e 1980, assim como outras intelectuais e ativistas negras dos Estados Unidos e da América Latina, hooks presencia dentro do movimento negro, dominado pelos homens, a negação do machismo, e no movimento feminista, dominado pelas mulheres brancas, a negação do racismo. Na época, essa dupla negação também se expressava na maioria das produções acadêmicas. A indignação e a dor provocadas pelo seu silenciamento pessoal e das experiências de mulheres negras foi central para que hooks fosse, aos poucos, definindo seus interesses de pesquisa.

Dando um passo atrás, na década de sessenta, o mercado editorial dos Estados Unidos encontrou um novo nicho de mercado: a experiência da mulher negra, focalizando sobretudo no período da escravidão. Vários daqueles trabalhos, escritos por pessoas brancas, reforçavam estereótipos como por exemplo a força da mulher negra e a premissa de que as mulheres negras não foram oprimidas pelo patriarcado, entre outras ideias descoladas da realidade vivenciada pelas mulheres negras.

E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo, escrito durante sua graduação e publicado em 1981, buscava responder teoricamente essas publicações. O título do livro recupera a pergunta proferida por Sojourner Truth, abolicionista e oradora , que no século XIX atuou na defesa de que as mulheres negras deveriam participar do sufrágio, já que na época a discussão incluía apenas as mulheres brancas e os homens negros. Desse modo, hooks atualizava o questionamento de Truth para tornar visível as experiências das mulheres negras durante escravidão, a desvalorização da mulheridade negra, o sexismo do homem negro, o racismo dentro do movimento feminista e o envolvimento das mulheres negras com o feminismo.

 

O pensamento de bell hooks e a emergência do feminismo negro

As motivações que levaram hooks escrever sobre as experiências das mulheres negras estão inseridas em um contexto mais amplo de emergência e consolidação dos feminismos negros nos Estados Unidos e na América Latina, durante as décadas de 1970 e 1980. Naquele momento, a luta política envolvia simultaneamente a disputa pelos espaços editoriais e acadêmicos.

Em termos políticos, as feministas negras estadunidenses compreenderam que precisavam produzir narrativas outras, e ao mesmo tempo recuperar uma tradição feminina negra de análise sobre a realidade e a sociedade. Não por acaso, mulheres como Sojourner Truth, Mary Church Terrel, Ana Julia Cooper, Amanda Berry Smith, que tiveram atuaram no passado, tiveram seus trabalhos revisitados pelas feministas negras nos 1970 e 1980.

Escrever e publicar em diferentes formatos era parte integrante de uma batalha que envolvia não apenas o conteúdo dos textos, mas quem deve narrá-los. Destaca-se, na década de 1970, a antologia coordenada por Toni Cade Bambara contendo ensaios e poesias de autoras negras como Audre Lorde, Alice Walker, Frances Beale, Carol e Brown, entre outras. Outra importante publicação, em 1978, foi o livro Black Macho and Myth of Super Woman, de Michele Wallace, cuja obra denuncia como as mulheres negras, na década de 1960, permaneceram marginalizadas pela cultura patriarcal do Black Power.

Nesse contexto, emerge o Coletivo Combahee River, uma organização feminista negra e lésbica ativa em Boston, com atuação entre os anos de 1974 e 1980. Essa organização entendia o feminismo negro como o movimento político importante para combater as múltiplas e simultâneas opressões que as mulheres negras enfrentam.

A partir da década de 1980, as publicações acadêmicas das mulheres negras seguem em escala crescente. Destacam-se as seguintes autoras e obras: Barbara Christian: Black Women Novelists (1980); Angela Davis: Mulheres, raça e classe (1981); Paula Gidding: When and Where I Enter: the impact of black women no sex and race in America (1984); Alice Walker: In Search of Our Mothers Gardens: womanist prose; Barbara Smith: Home Girls: a black feminist anthology (1983); Audre Lorde: Irmã Outsider (1984); Guy-Sheftall Beverly: Words in the fire: an anthology of African American Feminist Thought (1992), para citar algumas obras.

Essa pequena amostra nos permite visualizar as condições históricas em que o pensar e o escrever de bell hooks estava inserido. Não por acaso, ao longo de suas obras ela frequentemente dialoga com inúmeras intelectuais negras que emergiram naquele contexto.

Ainda pensando sobre o contexto de emergência e consolidação dos feminismos negros estadunidenses, a partir da década de 1990, a noção de experiência torna-se tema central para os feminismos. Isso porque a chamada terceira onda do feminismo, marcada pela reivindicação das feministas negras, latinas e indígenas, entre outras, passa questionar, sobretudo, a naturalização do sujeito mulher em torno das experiências das mulheres brancas de classe média. O ponto de debate girava em torno de duas questões: quem pode narrar as experiências e o problema em torno das essencialização identitárias. (PERPICH, 2010, p. 13–34)

No bojo desse debate, bell hooks, no livro Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade, publicado nos EUA em 1994, escreve um posicionamento que, ao mesmo tempo, funciona como uma autocrítica sobre a noção de “autoridade da experiência”, expressão que ela havia usado em seu primeiro livro, publicado em 1981, para tratar sobre quem está autorizado a escrever sobre as experiências das mulheres negras.

Hoje me sinto perturbada pelo termo “autoridade da experiência” e tenho aguda consciência de como ele é usado para silenciar e excluir. Mas quero dispor de minha expressão que afirme o caráter especial daqueles modos de conhecer radicados na experiência. Sei que a experiência pode ser um meio de conhecimento e pode informar o modo como sabemos o que sabemos. Embora me oponha a qualquer prática essencialista que construa a identidade de maneira monolítica exclusiva, não quero abrir mão do poder da experiência como ponto de vista a partir do qual pode-se fazer uma análise ou formular uma teoria. Eu me perturbo, por exemplo, quando todos os cursos sobre história ou literaturas negras em algumas faculdades e universidades são dados unicamente por professores brancos; me perturbo não porque penso que eles não conseguem conhecer essas realidades, mas sim porque as conhecem de modo diferente. […] Esse ponto de vista privilegiado não pode ser adquirido por meio de livros, tampouco pela observação distanciada e pelo estudo de uma determinada realidade. Para mim esse ponto de vista privilegiado não nasce da “autoridade da experiência”, mas sim da paixão da experiência, da paixão da lembrança. (HOOKS, 2013, p. 122–123)

Notemos que bell hooks faz autocrítica sem abrir mão da potencialidade de teorizações ancoradas nas experiências e no corpo.

Naquele contexto, era fundamental produzir conceitos que tornassem visíveis a singularidade das experiências das mulheres negras. Para citar alguns desses agenciamentos: em 1970, Frances Beale criou o conceito “double Jeopardy” para descrever como as opressões de raça e gênero se mesclam nas experiências das mulheres negras. (BEALE, 1970). Mais adiante, em 1989, a jurista Kimberle Crenshaw cunha o conceito interseccionalidade para descrever as opressões cruzadas que mulheres negras enfrentam.(CRENSHAW,1989).

Apesar de bell hooks não usar o conceito interseccionalidade, sua produção alinha-se às práticas das mulheres negras que, desde o período da escravidão, articulam em suas análises as dinâmicas de raça, classe e gênero para pensar sobre suas próprias experiências e sobre a sociedade. No rastro dessa tradição, hooks cunha o conceito de “imperialist white capitalist supremacist patriarchy” [patriarcado imperialista da supremacia capitalista branca] para detalhar as atávicas conexões entre as dominação de raça, classe e gênero e ao mesmo tempo nomear as especificidades. Na acepção de bell hooks, o conceito de interseccionalidade torna abstrato os elementos que sustentam a opressão. Para ela, é preciso nomear.

Vale a pena dizer que a abordagem interseccional tem sido usada por mulheres negras há muito tempo, sem que a prática fosse descrita conceitualmente. No Brasil, autoras como Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Luiza Bairros, Helena Theodoro, Sueli Carneiro, entre outras, também chamaram atenção para a especificidade das mulheres negras, articulando raça, classe, gênero e sexualidade em suas criações conceituais.

 

Temas e abordagens recorrentes

Em seus trabalhos, bell hooks mostra como as dimensões subjetivas estão articuladas às questões estruturais como racismo, capitalismo, imperialismo e o patriarcado. Isso favorece que ela mobilize temáticas variadas, mas há também livros onde ela focaliza em determinados assuntos, explorando-os com mais detalhes. Ademais, é comum bell hooks retomar e revisitar suas experiências em livros diferentes. Nessa perspectiva, é tarefa árdua tentar mapear os temas recorrentes de sua obra. Por isso, apenas para as finalidades desse artigo, divido sua produção em quatro três eixos analíticos. São eles:

(i) Crítica à práxis pedagógica

(ii) Crítica à produção cultural

(iii) Reflexões sobre espiritualidade, amor e autoestima

(iv) Dinâmicas de raça, classe e gênero.

A crítica à práxis pedagógica é tratada por hooks sobretudo nos livros da chamada trilogia do ensino: Ensinando a transgredir: educação como prática de liberdadeEnsinando pensamento crítico: sabedoria práticaEnsinando Comunidade: uma pedagogia da esperança. Nesses trabalhos, publicados nos Estados Unidos na década de 1990, chama atenção a inspiração de Paulo Freire para suas reflexões pedagógicas. Repetidas vezes, bell hooks narra como encontro com o pensamento do intelectual brasileiro foi para ela uma espécie de epifania, especialmente quando ela se torna professora. Naquele momento, hooks torna-se mais atenta em construir uma prática pedagógica que valorizasse a diferença e a dignidade humana, sem escamotear os conflitos que podem surgir na sala de aula com as alunas e alunos. Por conta disso, a reflexões de Paulo Freire sobre educação como prática de liberdade e emancipação convergiam com os princípios teóricos e éticos de bell hooks.

Tratando-se da crítica cultural, hooks focaliza a temática em pelo menos quatro obras. Duas traduzidas no Brasil: Anseios: raça gênero e políticas culturais Olhares negros: raça e representação; Duas publicadas apenas nos EUA: Art on mind: visual politics; Reel to real: race, sex, and class at the movies. Todas essas obras foram publicadas ao longo da década de 1990 nos Estados Unidos. Nesses livros, bell hooks realiza análises contundentes, chamando atenção para a necessidade de descolonizarmos nossos olhares e nossos desejos. Ao mesmo, ela não poupa críticas à indústria cultural, bem como não é condescendente com aquelas produções negras que, em seu entender, reforçam estereótipos raciais e de gênero. Madonna, Spike Lee, Wim Wenders e, mais recentemente, Beyoncé, entre tantos outros, são objetos de suas análises. Como crítica cultural, hooks ensina que é possível examinar um trabalho sem destruir a pessoa que o produziu, demonstrando que criticar é colocar a produção em perspectiva. Para tanto, ela torna visível os fios estruturais que sustentam determinadas visões de mundo e imaginários.

O terceiro eixo de análises que emerge de forma recorrente nas obras de bell hooks diz respeito de seus escritos sobre amor, espiritualidade e autoestima. Apesar das especificidades de cada tema, por meio deles hooks realiza uma crítica singular sobre os modos de subjetivação capitalista focalizados no individualismo, hedonismo e na competição. Nessa direção, amor, espiritualidade e autoestima são abordadas como práticas políticas em que o cuidado de si não está apartado do cuidado com a coletividade. Sobre o amor destaca-se a trilogia: Tudo sobre o amor: novas perspectivas; Salvation: black people and love e Communion: the female search for love. A discussão sobre autoestima é detalhada por hooks no livro Rock my soul: black people and self-steem. A preocupação com espiritualidade atravessa inúmeros de seus escritos, mas hooks costuma articular o tema, especialmente, com as discussões sobre amor, educação e autoestima.

O quarto eixo de análise, ou seja, as dinâmicas de raça, classe e gênero, não diz respeito de um tema específico, mas refere-se à uma abordagem. Em todos os trabalhos, hooks detalha como essas dinâmicas interferem em questões como nossa capacidade de expor ideias e criar, nas configurações de feminilidade e masculinidade presentes na sociedade, nas teorizações feministas e, até mesmo, nas relações que estabelecemos com os espaços físicos e subjetivos. Além dos livros mencionados anteriormente, outras obras que detalham essas dinâmicas. São elas: E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismoTeoria feminista: da margem ao centroErguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra; O feminismo é para todo mundoWe real cool: black men and masculinityThe will to change: men, masculinity, and loveBelonging: a culture of placeAppalachian elegy: poetry and placeWriting beyond race: living theory and practice; e também os infantis publicados no Brasil: Meu cabelo é de rainhaMinha dança tem história.

A produção de bell hooks convoca repensarmos o mundo à nossa volta e nossas ações. São teorizações construídas rente ao corpo de modo que forma e conteúdo estão a serviço das transformações éticas. Ela consegue denunciar opressões, sem resvalar para maniqueísmos e essencialismos. Uma prática narrativa que, mesmo tratando de assuntos complexos, convida para a conversa e para o encontro. Na leitura de suas obras, percorremos os caminhos singulares e as condições históricas que permitem um tornar-se bell hooks que não cessa de se transformar.

 

Referências bibliográficas

BAMBARA Toni Cade (ed). The black woman an antology. New York: Washington Square Press, 1970.

BEALE, Frances. Double Jeopardy: to be black and female. In: The black woman an antology. New York: Washington Square Press, 1970, p. 109–122.

CASHMORE, Ellis. Jim Crow. In: Dicionário de relações étnico-raciais. São Paulo: Selo Negro, 2000, p. 505–508

CRENSHAW, Kimberle W“Demarginalizing the intersection of race and sex; a black feminist critique of discrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics”. Legal Forum, University of Chicago, 1989 [1981], p. 139–167.

DAVIDSON, Maria del Guadalupe; YANCY, George. Critical Perspectives on bell hooks. New York and London: Routledge, 2013.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia Bocaiúva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019a.

_____. Olhares negros: raça e representação. Tradução de Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019b.

_____. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. Tradução Jamille Pinheiro. São Paulo: Elefante, 2019c.

_____. Ensinando pensamento crítico: sabedoria prática. Tradução: Bhuvi Libanio. São Paulo:Elefante, 2020.

_____. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.

_____. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013.

_____. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução: Ana Luiza Libâneo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.

_____. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e o feminismo. Tradução Bhuvi Libânio. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

_____. Rock my soul: black people and self-steem. New York: Washington Square Press, 2003.

_____. Tudo sobre amor: novas perspectivasTradução: Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2020.

_____. Wounds of Passion: a writing life. New York: New York and London: Routledge, 1997.

PERPICH, Diane. “Black Feminism, Poststructuralism, and the Contested character of experience.” In: DAVIDSON, Maria del Guadalupe, Kathryn T. Gines, and Donna-Dale L. Marcano Eds. Convergences: Black Feminism and Continental Philosophy. Albany: State University of New York Press, 2010, p. 13–34.

SMITH, Barbara. Home Girls: a feminist antology. New York: Women of Color Press, 1983.

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