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Apresentação de Vozes afro-atlânticas: autobiografias e memórias da escravidão e da liberdade
Ilustração de Aline Bispo

 

O antônimo de jovem é maduro. Uma das entradas semânticas para “maduro” refere-se a “espírito ponderado, refletido, prudente”. Maduro também é sinônimo de experimentado. Logo, jovem, por suposto contrário imediato, diz respeito àquele que não tem o espírito amadurecido. Também pode dizer sobre aquele que “ainda possui o vigor da juventude”. Assim, no seu contrário e nos seus significados, maduro e jovem são qualificações que podem evocar atributos positivos ou negativos, a depender do ângulo em que se olha.

A sociedade moderna hipervaloriza a juventude, muito por conta da capacidade de produção e consumo desse grupo. Sociedades pré-capitalistas, em geral, tiveram no ancião a referência, figuras dotadas de experiência e saber. Quando se pensa na figura de um intelectual, sendo essa uma atividade anterior ao capital, indiretamente, os atributos desse sujeito remetem ao do indivíduo maduro. “Profissão para cabelos brancos”, dizem. Só que existem jovens intelectuais maduros. Tenra idade, vigor e ousadia, mas com maestria, sabedoria e elegância dos mais velhos. São poucos e raros. Rafael Domingos Oliveira pertence a essa estirpe.

Vozes afro-atlânticas é a versão editada de sua dissertação de mestrado. Faz aqui investida analítica ousada e insurgente, semelhante a que fez Celia Maria Marinho de Azevedo quando se propôs a estudar o movimento abolicionista estadunidense. Com esses estudos, fica a lição de que não somos apenas o outro ou a cobaia sociológica dos intelectuais do Norte.

O intento de Rafael — que, diga-se de passagem, se efetiva com classe —, ao estudar a autobiografia de escravizados nos Estados Unidos, cumpre dupla função: estudar a gênese da contradição fundante da modernidade capitalista no interior daquela que se tornará a principal potência econômica mundial em meados do século XX e, como derivação, nos permitir acesso a um debate de forma e conteúdo relacionado a um dos mais importantes instrumentos de reorganização e  insurgência da diáspora negra: a escrita em primeira pessoa.

As autobiografias de escravizados que foram escassas na América Latina, no entanto, somaram-se em algumas dezenas no hemisfério norte. Talvez isso explique, no longo prazo, a emergência de uma literatura negra que se lastreou até a conquista do prêmio Nobel de Literatura pela escritora Toni Morrison. Aliás, a forma autobiografia veio a dar conteúdo para o primeiro livro de literatura negra estadunidense com James Weldon Johnson, bem como foi plataforma de sínteses biográficas para figuras ilustres, como Malcolm X e Angela Davis.

Salta à vista o cotejo cirúrgico e eficiente que o autor faz da bibliografia de base e das fontes, sua matéria-prima. Recorrer ao último Foucault para pensar “A escrita de si”, quando o autor francês reabilita o sujeito moderno que “morreu” em As palavras e as coisas, não se dá sem crítica. A importância desse debate da escrita em primeira pessoa do “velho” Foucault para os estudos da escravidão, em especial as pesquisas sobre as autobiografias, desdobrou-se em uma espécie de glorificação do signo em detrimento do sujeito que o produziu, segundo Rafael. Ainda assim, esse debate nos permite refletir como negros são sujeitos e em quais condições na modernidade.

Em suma, a ousadia do intento se une à maturidade da execução. Em seu primeiro livro, Rafael Domingos Oliveira se consagra como um dos grandes nomes da historiografia desde o Sul para o mundo. Com o passado de luta feita por homens e mulheres escravizados tão bem complexificado por Rafael, temos mais elementos para interpelar o presente, com um horizonte de possibilidades mais digno e emancipado.

 

Marcio Farias
Psicólogo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre e doutor em Psicologia Social pela PUC-SP e professor  convidado do CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação) da ECA/USP. É membro do colegiado do Instituto Amma Psique e Negritude e autor de Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico (Dandara, 2019)

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