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Por Ivone Gebara
Publicado na orelha de Sou eu e não mais sou

 

Sou eu e não mais sou, não mais sou o que fui, e o que sou é também o que fui. Sou memória de mim mesma, sou vida e morte acordando e dormindo juntas. Não se trata de um jogo de palavras, mas do corpo experimentando a vida misturada, sentindo as pedras do caminho e as flores do campo, apreendendo a vida entrelaçada em si mesma.

Poetizando o corpo outrora forte fragilizado, o corpo fragilizado agora fortalecido pela poesia e pela escuta dele mesmo, seus versos nos falam. É como se as sombras que nos habitam pudessem ser em parte apreendidas e se transformassem em iluminuras de compreensão da vida. Por trás das rimas, da divisão presente nas palavras, dos impropérios e iras, das palavras poéticas benditas e malditas, há evocações de experiências vividas. A vida se esconde e se revela na poesia de Karen.

Seus textos são um relato-retrato das dores e lamentos de seu corpo, das descobertas oferecidas. São sua arte, seu desejo, seu abandono, seu desconhecimento, seu de-reconhecimento de si pelos outros. São a experiência de odores vários e até dos podres, do cansaço, da fome, da sede, da perda e do encontro de si. São ela diferente dela. São ela afirmada como ele, são ele nela. São ela como multidão, como mundo, e o mundo nela através de uma multiplicidade de vivências e emoções mais sentidas que pensadas. Sentimento do mundo. Misturas do mundo nas agressões inesperadas do mundo que nenhum conceito e nenhuma explicação esgotam. Tudo é balbucio mutante.

Através de caminhos e descaminhos, a poesia de Karen descortina sua aptidão de escutar o mundo, escutar-se a si mesma, sentir o mundo e a si mesma, ora na acolhida, ora no estranhamento, ora no conhecimento, ora na perplexidade que parece continuamente atravessá-la. Escutadeira sensitiva, nos convida a ir além das aparências, nos convoca ao mistério escondido em nós mesmas, que se revela microscopicamente, e apenas se não tivermos medo nos aproxima de nossas entranhas ancestrais.

Ler os poemas de Karen é borrifar o ar que respiramos de fina poesia, é sentir-se em êxtase, em suspensão da respiração ordinária para só inspirar/ expirar novamente depois da última palavra lida, sentida e consentida. A intensidade da emoção que provoca é crescente, como se acompanhássemos uma história de beleza ímpar, de dor íntima e de carícia interior que, embora provinda do ordinário da vida, nos subtrai dele. Então a misteriosa e incontida lágrima brota dos olhos como um orvalho quente e sereno nas pétalas de uma pequena flor.

E a gente chora misturando dor e alegria, com uma imensa vontade de abraçá-la e agradecer esse dom que nos faz reconhecer-nos cada dia e cada hora como mortais. E então, sermos capazes de dizer, como ela, “morrer um pouco para não morrer de vez” é nossa sina, nossa beleza, nossa tristeza e a possibilidade de amar e de fazer poesia sempre de novo.

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