Veias abertas do agro

Adaptado a partir do doutorado homônimo do antropólogo Caio Pompeia, Formação política do agronegócio analisa os setenta anos que vão da formulação da noção de agribusiness, na década de 1950, ao governo Bolsonaro. 

Por Breno Castro Alves
@trocavales
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Não faz muito tempo e lá estava Lima Duarte brilhando nos intervalos da Rede Globo de televisão: “Bendita terra, que alimenta todo um país, que alimenta o mundo. Bendita terra, uma das maiores agronações do planeta. Me dá orgulho de dizer: sou agro. Agrocidadão. Agroator. Agrobrasileiro”. Na mesma época ocorreu a campanha “Agro é Pop, Agro é Tech, Agro é Tudo”, você se lembra, e depois de tanto esforço o que salta aos olhos é o malabarismo para não dizer agronegócio.

Os publicitários também testaram os ridículos “agroestudante”, “agroestilista”, “agrotaxista” e “agromãe”, qualquer coisa para se despegar da pecha de business — afinal, falamos também do desmatamento de floresta para produzir exportação primária. Campanha alguma pode esconder a voracidade do setor, ainda mais em tempos de franca expansão: o agronegócio aumentou sua participação relativa ao PIB de 21%, em 2019, para 26%, em 2020, dizem os próprios.

Então oferecemos este Formação política do agronegócio, adaptado a partir do doutorado homônimo de Caio Pompeia, antropólogo que se especializou nas elites brasileiras. O livro analisa os setenta anos que vão da formulação da noção de agribusiness, na década de 1950, nos Estados Unidos, ao governo de Jair Bolsonaro.

Demonstra que os diferentes atores do setor são capazes de atuar em conjunto quando convêm, ao mesmo tempo que sustentam divergências sobre questões socioambientais. O autor detalhadamente demonstra como cada uma das organizações se posiciona e, mais do que isso, como se transforma ao longo do tempo.

Desta forma, cria contraste entre as fileiras do aparentemente monolítico agronegócio. Demonstra como uma infinidade de produtores financiam suas entidades representativas — empresários do campo, da indústria e do setor financeiro que pagam mensalidade para a instituição sindical defender seus interesses em Brasília, ou onde mais lucrativo for.

Cabe reparar que falamos dos mesmos milionários que desestimulam ou diretamente sabotam a organização sindical de seus trabalhadores, enquanto organizam um ecossistema cada vez maior e mais ativo de CNPJs, cheios de recursos e lobby para mover o Estado em direção aos seus interesses — que, ao contrário do que exaustivamente propagandeiam, não são os da maioria dos brasileiros.

 

Sindicatos patronais

Caio traça a genealogia do conceito de agribusiness desde sua criação em Harvard e exportação pelo governo de Lyndon Johnson, presidente ianque da década de 1960 que vendeu seu empenho na guerra contra a fome quando, na verdade, fez abrir caminho para as corporações estadunidenses melhor explorarem outros povos.

Mas o discurso caiu muito bem na Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), responsável pelas primeiras inserções do conceito de agronegócio no país, defendendo já em 1964 que “não só o ato de arar e semear, mas, também, o de adquirir materiais e equipamentos, bem como o de transformar e distribuir os produtos do campo”.

A CNA segue ativa até hoje. Katia Abreu, ministra da Agricultura do segundo e breve governo Dilma, foi presidente da organização, que, sob sua liderança, exerceu importante papel no recente processo de alijamento do Código Florestal — episódio que rendeu a Katia o apelido de “rainha da motosserra”.

O setor iniciou nos anos 1990 uma forte e contínua pressão pela flexibilização do Código Florestal de 1964, levada a cabo em 2012. O novo texto, pasme, diminui as proteções jurídicas que o código de 1964 garantia às reservas florestais do país.

O processo de lobby permanente foi formativo para o setor. Também deu origem ao Instituto Pensar Agropecuária (IPA), por vezes chamado de Instituto Pensar Agro, que nasceu com recursos da Associação Mato-Grossense de Produtores de Algodão (Ampa) e da Associação de Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato-Grosso (Aprosoja-MT), e adquiriu caráter formal como pessoa jurídica de direito privado em 2011, auge da articulação pelo Código Florestal.

O IPA cresceu rapidamente, passou de dez associações em 2010 para 38 em 2016, quando impetuosamente atuou para encerrar o governo petista e derrubar Dilma. Formação política do agronegócio, Caio Pompeia escreve:

“Por um lado, os recursos permitem uma equipe técnico-organizacional estável e experiente, além de contratações de consultorias especializadas. Os agentes desempenham funções indispensáveis no acompanhamento de tramitações de interesse das associações nos três Poderes, na facilitação das interações no instituto, na orientação técnica e na montagem de instrumentos para executar deliberações.”

Com a consolidação do IPA, as interações entre produtores e poderes da República deixaram de ser fragmentadas, como era usual nos anos 1990 e 2000, e passaram a ocorrer diretamente com o coletivo que compunha a mesa diretora da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a famosa bancada do boi.

Para além destes, a pesquisa demonstra como o campo político do agronegócio é heterogêneo, sua base composta por enorme sequência de siglas como Abag, FNA, Cosag, Ares, Conselho do Agro, Coalização, entre muitas, ou seja, bem mais do que as já citadas nestes poucos parágrafos que você tem em mãos.

E dentro dessa diversidade coube ao autor reconhecer:

(i) a relevância do Instituto para o Agronegócio Responsável em estimular a ampliação da rastreabilidade nos sistemas agroalimentares;

(ii) a importância da Aliança Brasileira pelo Clima e do Fórum Clima em impulsionar a atenção das organizações para as mudanças climáticas e encorajar predisposições público-privadas voltadas a fomentar transições para uma economia de baixo carbono;

E, sobretudo, (iii) os méritos da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura em propor ações para a diminuição do desmatamento na Amazônia, incentivar novos desdobramentos às iniciativas de descarbonização e levantar debates públicos sobre as contradições de parte das formas de uso da terra no país.

Como se vê, a realidade outra vez se prova mais complexa do que sugere o senso comum — ou o tiozão do boteco. Parte do empresariado do latifúndio extrativista está se encontrando, veja você, à esquerda do Brasil do inqualificável presidente Messias. Tentam, com interesses comerciais evidentes, moderar Jair, o mínimo.

Este livro mapeia a multiplicidade do setor que ainda tem o Brasil nas mãos.

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