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Assim como as dezenas de jornalistas, defensores dos direitos humanos, indígenas, camponeses e ambientalistas executadas nos últimos anos no Brasil — vejamos as tristes listas da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e de ongs nacionais e estrangeiras —, o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips tem como pano de fundo grandes dilemas contemporâneos. Claro que tais dilemas passam pela ausência do Estado na Amazônia, pelo abandono de sua população e pelo reino do crime na floresta, admitidos sem constrangimentos pelo presidente e pelo vice-presidente da República (ex-militares que adoram bater no peito em nome da soberania nacional). Mas há questões ainda mais fundamentais, pois estão nos alicerces de nossa organização enquanto país.

A primeira diz respeito às motivações do crime. Bruno e Dom — e tantos outros antes deles, nunca é demais lembrar — foram mortos por defenderem uma relação mais harmoniosa entre seres humanos e natureza, pautada pelo respeito aos ciclos da vida e à capacidade de regeneração do meio ambiente. No Vale do Javari, palco da mais nova tragédia brasileira, essa relação é encarnada pelos Marubo, Matsés, Matis, Kulina, Kanamari e outros povos em isolamento voluntário que lutam diuturnamente contra aqueles que enxergam a hileia como fonte de recursos a serem explorados à exaustão: gente que — por convicção ou falta de perspectivas, e chancelada por poderosos interesses (trans)nacionais — pratica incessantemente ilegalidades como a pesca, a caça, o garimpo e a extração de madeira em terras indígenas e áreas de proteção ambiental, abrindo caminho para outras atividades econômicas que encaram a floresta como entrave ao desenvolvimento.

São pessoas para as quais só tem importância a árvore que estiver a caminho da madeireira; o peixe ou animal contrabandeado por seu exotismo ou vendido a quilo no mercado; a terra esburacada em busca de minérios; os rios como meio de locomoção. Essa noção tão colonial tomou conta do coração e da mente da maioria da população brasileira, de Norte a Sul, no campo e na cidade, no interior e no litoral, e motiva tanto o dedo que aperta o gatilho no meio do mato quanto o comentário de sofá durante o telejornal. Nos últimos anos, seus mais inescrupulosos defensores se instalaram eleitoralmente no alto do poder, de onde incentivam todo tipo de crimes sociais, raciais, culturais e ambientais enquanto vociferam contra bandidos e aplaudem a polícia: uma contradição apenas aparente, porque é fácil ver que algumas pessoas são incentivadas a delinquir (ou “passar a boiada”) enquanto outras pagam com a vida por qualquer pequeno deslize perante a lei — ou qualquer intromissão nos negócios de quem tem carta branca para explorar, destruir e, claro, matar.

Isso nos leva ao segundo grande dilema revelado pelo assassinato de Bruno e Dom, que é apenas mais um capítulo na longa e dolorosa falência do que um dia nos atrevemos a chamar de “instituições” brasileiras. No Planalto, temos um presidente que culpabiliza desavergonhadamente as vítimas (que deviam ter tido mais cuidado, pois eram malvistas na região — por que será?), um ministro da Justiça que descreve o episódio como maluquice (mesmo que todos os envolvidos soubessem muito bem o que estavam fazendo) e uma Polícia Federal que garante logo de cara que os assassinos agiram sozinhos, descartando a ação de organizações criminosas demonstrada em farta documentação e informada repetidas vezes às autoridades pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja).

Essa falência institucional é reforçada ainda pelo fato de os indígenas da Univaja terem sido os verdadeiros responsáveis por elucidar o desaparecimento de Bruno e Dom: sem a inteligência que reuniram em anos de resistência aos invasores, entre os quais estão os suspeitos de assassinar o jornalista e o indigenista, a polícia levaria muito mais tempo para encontrar os restos mortais das vítimas ou prender algum suspeito — quiçá, muito provavelmente, jamais concluiria a “investigação”, como costuma acontecer nesses casos.

Por trás de toda a justificada comoção popular e midiática, e do falatório ofensivo das autoridades, emerge a realidade de que Bruno e Dom são as mais novas vítimas da marcha do desenvolvimento brasileiro: essa ideologia que prega uma vida melhor mas entrega sangue, lama e desigualdade. Quando interessa — e quase sempre interessa —, Estado e crime organizado não hesitam em dar as mãos, por baixo dos panos ou às claras, material ou retoricamente. Assim foi durante toda nossa história, e continua sendo. Nos convenceremos, um dia, de que esses polos aparentemente opostos são parte da mesma engrenagem?

Os indígenas da Univaja mostram o caminho, assim como outros povos que resolveram se organizar para defender suas terras contra criminosos jamais alcançados pela justiça. Enquanto a civilização empilha corpos e destrói paisagens pelos 8,5 milhões de quilômetros quadrados do território nacional, seja nos rincões mais isolados, seja nos grandes centros superpovoados, é cada vez mais nítido que o futuro já está sendo vivido, ensinado e demonstrado todos os dias, todas as horas, pelos índios.

Como editora de livros que discutem permanentemente esses e outros temas, a Elefante não passou incólume à morte de Bruno e Dom — nem à de nenhum outro defensor dos direitos humanos, ambientais, indígenas, sindicais, camponeses etc. Estamos em luto, amargando a tristeza que tem sido viver no Brasil e tentando despejar nossa indignação em cada um dos títulos que publicamos, colocando nossa energia rebelde na trincheira em que decidimos pelejar. Sim, é muito pouco. E ainda pior que a dor da perda de companheiros de luta (que não conhecíamos pessoalmente, mas cuja identificação é automática) é a sensação de impotência diante de uma espiral de violência que produz baixas sempre do lado de cá.

Tadeu Breda
editor

 

Imagem: Servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio), em greve; publicada no Poder360.

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