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Por Pedro Meira Monteiro
Publicado na Revista Pessoa

 

Makunaimã, o mito através do tempo é uma obra em grande medida performática. Peça de teatro, funciona também como uma vivissecção dos tempos contemporâneos, que são vistos através da polêmica sobre Macunaíma. Que voz é a de Macunaíma? Existe ou não apropriação cultural no gesto de Mário de Andrade? Qual a relação entre apropriação cultural e literatura? Como nos relacionamos, hoje, com a figura do escritor?

São questões que foram aumentando de temperatura nos últimos anos, até que chegasse esse livrinho que dramatiza tudo isso. E o faz de forma muito dialética, ou dialógica, numa espécie de banquete platônico. Ou melhor, talvez seja mais justo dizer que ele reproduz a forma d’O Banquete do próprio Mário de Andrade. De fato, Mário estava escrevendo um “Banquete” em 1945, e tratava-se, justamente, de uma situação teatral, em que a cena cultural brasileira se desnudava através de personagens que tipificavam o arrivista, o idealista, o ricaço que financia as artes, a cantora decadente, o político etc.

Mas no caso de Makunaimã, o mito através do tempo, a ideia de um painel pintado por um único indivíduo se quebra logo de início, quando o leitor se dá conta de que o livro retoma, na forma do teatro, um encontro que ocorreu na Casa de Mário de Andrade, em 2018, tendo, ao invés de personagens convencionais, papéis que são desempenhados, digamos assim, pelos próprios personagens reais. Jaider é Jaider, a curadora Deborah é Deborah Goldemberg, a cantora Iara é Iara Rennó etc. Temos vários indígenas na plateia (Wapichana, Macuxi, Taurepang), além de um professor de literatura, um poeta, um ator e assim por diante.

Como experiência-limite entre o livro e o diálogo, a peça de teatro se escreve, declaradamente, sob a égide de Paul Zumthor, que estudou a forma como as narrativas orais da Idade Média foram transcritas e ingressaram no universo literário escrito. Este, aliás, é um problema que atravessa o livro Makunaimã: quando Koch-Grünberg emprestou os ouvidos, ou melhor, quando dispôs o fonógrafo diante de Akuli Taurepang, havia ali um ponto zero de um processo doloroso e fundamental, que é a retirada das palavras de seu ninho original. Esse seria o gesto inaugural de uma “apropriação”.

Mas como todos nós já abandonamos esse ninho original há muito tempo, vale a pena entender as dores e as eventuais maravilhas que esse movimento abre: do jovem xamã ao antropólogo, deste ao escritor, e dele a nós, hoje, aqui.

Na peça de teatro, encontramos a casa de Mário de Andrade seccionada. No primeiro andar, desenrola-se uma palestra sobre os 90 anos da publicação de Macunaíma, reunindo a plateia já mencionada. No andar de cima, vemos o quarto em que Mário de Andrade está morto. Só que ele acorda lentamente, incomodado com o ruído que vem de baixo.

Mário começa a se interessar pelo papo que ouve, e desce lentamente. Sua entrada em cena será o aparecimento de um fantasma. Mas, ainda no quarto, sentado numa poltrona, Mário ouve o antropólogo, que ia relatando a origem do trabalho de campo de Koch-Grünberg em Roraima. Nesse exato momento, ouvimos um Mário ainda meio sonolento, que resmunga:

De novo esse papo? Já disse que copiei mesmo, oras bolas! Disse até que me surpreende o fato de falarem que me restringi à cópia de Koch-Grünberg, quando copiei a todos, às vezes textualmente: Capistrano de Abreu, Couto de Magalhães, Pero Vaz de Caminha… Ai, que preguiça. (18)

No mesmo instante, na sala logo abaixo, Ariel, o filósofo-poeta, pergunta à plateia: “Por que não podemos dizer abertamente que Mário era preto, que Mário era gay?” Ao ouvir a pergunta, Mário, ainda no segundo andar, desperta assustado: “Ui, o que é isso?” E começa a prestar atenção.

Depois de hesitar um pouco, cada vez mais interessado pela conversa, ele desce e dá de cara com o grupo assistindo ao filme de Joaquim Pedro de Andrade, na cena em que o gigante Piaimã e Macunaíma balançam sobre uma piscina que, no romance, era uma gigantesca macarronada ítalo-paulistana, e no filme é uma feijoada tropicalista-freyriana. Akuli-pa, que está na plateia e é neto do “informante” de Koch-Grünberg, ri muito, porque já conhece o desfecho e sabe que Macunaíma não vai morrer.

É então que Mário surge na cena principal. Evidentemente, passa algum tempo até que todos se acostumem à sua presença. Refeita do susto pela entrada do fantasma em cena, a curadora pede que todos se apresentem. Num primeiro momento, Mário se mostra surpreso com a existência de um escritor indígena na plateia. Logo depois, começa um verdadeiro flerte entre Mário e o artista Macuxi, Jaider. Jaider, aliás, se declara artista, mas diz que não gosta do epíteto “plástico”, de artista plástico, até porque, diz com humor, “dispenso o plástico, que está destruindo o nosso meio ambiente”. Logo em seguida, ele se declara artista justamente por estar diante daquilo que chama de “furacão maravilhoso” da arte, que não é escola, nem igreja, nem partido político. Mário se entusiasma e diz que estão juntos em alma… Jaider responde prontamente: “hashtag tamojunto”!

É o início de um aprendizado às avessas, em que o defunto autor vai ser ensinado sobre hashtags, celulares (que ele compara ao telégrafo), sobre Michel Foucault etc. Tudo então se passa na live de Jaider, que começa a filmar o evento. Mário de Andrade não parece ter qualquer grilo diante da ansiedade da plateia, que espera dele que se assuma negro e gay. Ele chega a fazer gracinhas a respeito; depois de ser apresentado a uma foto de Bob Marley no celular, imagina-se entrando no Teatro Municipal de São Paulo, em 1922, em plena Semana de Arte Moderna, usando dreadlocks.

Sobretudo, o Mário desse texto coletivo — ou melhor, o Mário de Andrade que resulta desse texto coletivo — está aberto a atravessar o mar do tempo, para revelar-se sincrônico, ali onde sua presença é fundamentalmente anacrônica. O fantasma parece transar bem com as demandas dos novos tempos, e não chega a se incomodar quando a curadora lhe diz que as cenas violentas de sexo entre Macunaíma e Ci não seriam bem recebidas hoje em dia.

A curadora é interrompida, no entanto, pelo Professor Russ, cuja pose acadêmica é imediatamente desmanchada pelo deboche de Mário, avesso à pompa universitária. Mas o Professor Doutor Russ tem um ponto, e discorda que se possa cobrar de Mário de Andrade algo que hoje é normal, mas que há oitenta anos nem estava ainda no horizonte. Curiosamente, Mário fica do lado da curadora. Ou melhor, fica no meio do caminho, e responde:

Eu coloquei daquele jeito sabendo que é brutal e dominador, porque o sexo é assim mesmo — nos marca e faz sangrar. Se você me perguntar se eu queria uma relação assim como a de Macunaíma e Ci, paixão violenta, eu digo que não. Mas, se você me perguntar se eu já tive uma relação como a deles, eu não nego. E se perguntar se, depois daquilo, eu queria qualquer outra coisa na vida, eu digo que não. (35)

Todos riem da sinceridade marota de Mário, mas uma nota destoante aparece na voz audaz de Laerte, o escritor Wapichana que julga, amargamente, que as estórias do seu povo foram todas roubadas nessa história. Jaider não titubeia e responde: “Isso sempre houve. Indígenas contando nossa história para os brancos. Salve Akuli Taurepang!” (37)

O xis da questão está na crítica que a curadora faz à ideia de “folclore”, com a qual aliás Mário está de acordo. Mas Laerte Wapichana segue incomodado. Diante de uma pergunta de Mário sobre a miscigenação, Laerte responde dizendo que ele é Wapichana e não “índio”, e que o Brasil inventou a ideia de índio como uma generalização, uma verdadeira violência nacionalista, que oculta os crimes ao criar esses nomes coletivos sem sentido algum.

Mário parece mais interessado no resto da plateia, e talvez menos em Laerte Wapichana. De fato, ele quer escutar Akuli-pa, o velho que não se identifica como “escritor” indígena, mas que conta intermináveis histórias sobre coisas que ele mesmo, Akuli-pa, não chegou a vivenciar, mas que seu pai pajé contava.

Aqui surge uma torsão fundamental na peça: a religião e a questão evangélica.

Mário fica curioso e pergunta como Akuli-pa e os seus se tornaram adventistas. Com a mensagem da Bíblia, diz Akuli-pa, seu pai “deixou de beber caxiri forte, deixou o tabaco” (45). Desenrola-se então uma batalha surda entre convertidos e não convertidos, quem segue o Evangelho e quem o deixou. Akuli-pa conta, entretanto, que algo das práticas xamânicas ficou. Confessa que continua fazendo a “fumaça maurái”. Diz Akuli-pa:

Eu vou ser sincero com vocês. Aquilo que Jaider fez — a fumaça maruái. Isso nós ainda praticamos. Sabendo que, biblicamente, temos que confiar só em Deus. Só Deus mesmo. Mas, como ainda estamos no mundo, então a gente pratica isso para a nossa família, para nossos netos, quando estão assustados… A gente crê porque traz resultado positivo. Deus criou tudo e deixou. Então aquilo que faz bem, eu acredito que é porque Deus está permitindo. (47)

Aqui, a permissividade é uma forma de resistência. A prática antiga, meio escondida dos padres e pastores, é testemunho da porosidade de uma cultura que não quer ser simplesmente esmagada pela religião branca. Akuli-pa conta que fora convidado pela curadora para vir a São Paulo, mas que manuseou Macunaíma, de Mário de Andrade, pela primeira vez no avião, quando vinha de Roraima e Jaider lhe deu um exemplar.

A curadora explica a Mário que o seu livro tinha se convertido numa “obra-prima” da literatura brasileira. É quando o Professor Doutor Russ faz um elogio à “mistura de tantas culturas” que o modernismo promoveu. Mário, entre emocionado e sem graça, diz “Eu não sei mais se era isso que eu queria…”

Mesmo assim, cheio de dúvidas, Mário conta a Akuli-pa que, ao ler os mitos do avô dele, tinha achado que aquilo era “a arte mais pura”. “Foi um processo criativo muito elevado”, diz Mário, emocionado. Ao que Akuli-pa responde, sempre rindo: “Makunaimã estava contigo” (51).

[Não resisto a introduzir a minha voz para dizer algo que se ouve nas igrejas católicas: “e ele está no meio de nós”…]

Mário se questiona sobre sua própria função, dizendo que, talvez, o verdadeiro autor de Macunaíma seja Akuli. A afirmação gera um cochicho geral na plateia, e se inicia uma sofisticada discussão sobre autoria e estórias que circulam fora do livro. O livro, dirá o poeta-filósofo Ariel, é o verdadeiro “piaimã”.

O drama está montado: o livro de Mário de Andrade não conspurcou as estórias orais, mas sacou-as do seu ambiente. O movimento não é diverso daquele que marca a própria experiência indígena dos que saem—dos que precisam sair, por razões muitas vezes pessoais. É que diz Jaider:

Eu penso o mesmo. Hoje sou artista mais do que sou Macuxi. Não tive escolha. Cresci ouvindo tiros dos fazendeiros nas aldeias. Fui criado indo à igreja católica, participando de movimento de base. Falando uma língua que não é a do meu povo. Tive que fazer um trabalho espiritual xamanístico para imaginar o que era ser Macuxi antes da colonização. Para poder ser um artista indígena de verdade. Não apenas um artista que, por acaso, é de origem indígena. Um mero artista brasileiro, digamos assim, interessado em povos indígenas. Como você, Mário. Como não ser você? Como ser eu mesmo? Essa é a minha busca existencial. (57)

Jaider confessa, no entanto, que o anseio pela fama, bem como a “necessidade de se provar entre os pares”, o assombra. Mário lhe diz, antes de abraçá-lo com emoção: “Meu caro, somos irmãos até nisso”.

Discutem-se, a partir daí, as perdas dos povos indígenas. Trata-se de uma perda real — de terras, de corpos, de dignidade —, embora se trate também da perda da própria condição indígena. O genocídio é a experiência concreta de uma perda ainda maior, se é possível dizer assim. A miscigenação, aponta Laerte Wapichana, é o véu que esconde a grande perda identitária.

Mário aprende um monte: sobre a delicada questão das fronteiras, por exemplo, e do sem sentido das linhas que separam o Brasil da Venezuela e da Guiana.

A questão espinhosa é o desejo que move quem postula a unidade nacional. É o que se explicita no final do primeiro ato, que mostro a vocês:

No segundo ato, Mário de Andrade retoma sua posição central, e a cena se transforma num grande sarau modernista (ou pós-modernista), em que se questiona o quanto Koch-Grünberg realmente “ouviu” as narrativas de Akuli, o avô de Akuli-pa, que está presente. O que vemos é um confronto de gerações em meio à mais fina discussão sobre a originalidade do que se ouve, e do que se ouviu um dia.

A certa altura, “escutamos”, na peça de teatro, a gravação, em fita cassete, de Akuli-mumu, o pai de Akuli-pa, e filho do Akuli que forneceu as estórias a Koch-Grünberg.

Nesse momento, as estórias passam a se engolfar, repetindo-se, um pouco como os desenhos de Jaider Esbell (não mais o personagem), em que não sabemos bem onde começa uma forma e onde termina outra. Aliás, na peça, Jaider (o personagem), desenha sem parar enquanto as estórias vão sendo narradas.

É um momento de performatividade máxima do texto: vemos aquilo que está acontecendo, e aquilo que está acontecendo vai se produzindo diante de nós, na forma dos desenhos e dos relatos orais que começamos a imaginar ouvir. O registro oral cai no abismo do texto, mas continua vibrando de alguma forma, no “reino silencioso do livro”, como diz o filósofo-poeta Ariel (86).

Só que não cabe nenhuma solenidade aí. Ao ser perguntado sobre como se conta hoje a história da morte de Piaimã, Akuli-pa narra uma estória que é percebida pela plateia como esvaziada da sua aura original, já próxima da anedota. “Um meme!”, dirá Jaider. Mário pergunta, intrigado: “O que é um meme?”. A curadora lhe explica que é “algo bem degradado, meramente visual, em geral, feito a partir de um fato extraído do seu contexto original”.

Mário reage: “que heresia!” (88)

Em seguida, o ator Jefferson lê um trecho da narrativa de Akuli Taurepang coletada por Koch Grünberg e publicada em 1924, sobre a “morte e ressurreição de Makunaimã”. Em seguida, Mário de Andrade é convidado a ler um trecho do seu Macunaíma, no qual, ao tentar proteger o irmão, Maanape engana Piaimã, o gigante Venceslau Pietro Pietra. Terminada a leitura de Mário, todos batem palmas, e Jaider grita, para diversão geral: “Plágio!”

Logo em seguida, é Iara quem canta, e eis que nos vemos diante do plágio do plágio do plágio… Toda a questão é a socialização do narrado, nessa espécie de WhatsApp original que existia quando os parentes compartilhavam as suas estórias (104). Ao fim, Jaider conta uma estória que Mário lamenta não ter conhecido antes, porque a teria incluído no seu Macunaíma.

Mas tudo tem que acabar, e eis que começa um encantamento: Mário se escora nas paredes, como que buscando o apoio do passado. O sarau continua, divertido, sem que os presentes percebam que o autor vai sumindo, sumindo, até que já não está mais.

# # #

O que restou? O livro? Uma peça de teatro? Com, ou sem Mário de Andrade?

Não dá para saber. De toda forma, somos avisados, bem ao final, que Jaider fez as lives, e que, portanto, Mário de Andrade estará para sempre conosco. Os presentes se emocionam, começam a elogiar o morto, até que, no finzinho, Akuli-pa pergunte a todos, intrigado: “Esse homem era o pajé de vocês?”

A curadora responde: “Acho que sim. O pai dos pajés — nosso Piaimã.”

Nesse ínterim, as luzes se apagam.

 

Pedro Meira Monteiro é professor titular de literatura e cultura brasileira e chefe do Departamento de Espanhol e Português na Princeton University. É autor, tradutor e organizador de diversos livros, incluindo a edição crítica de Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, com Lilia Moritz Schwarcz (Companhia das Letras, 2016), e Conta-gotas: máximas e reflexões (e-galáxia, 2016). No próximo ano a editora Relicário publica Nós somos muitas: ensaios sobre crise, cultura e esperança, livro em parceria com Flora Thomson-DeVeaux, Rogério Barbosa e Arto Lindsay.

O texto acima foi apresentado na oficina Amazonian Poetics | Poéticas Amazônicas, que organizei com Marília Librandi e Carlos Fausto no Brazil LAB da Princeton University. A oficina, oferecida em novembro de 2019, reuniu pesquisadores e artistas indígenas durante três dias para discutir as formas de fazer e inventar a Amazônia. O encontro em Princeton expandiu as discussões que havíamos tido numa oficina anterior, com o mesmo nome, organizada por mim, Carlos Fausto e André Botelho em junho daquele ano, no Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro. Salvo pequenas alterações de estilo, optei por conservar o tom coloquial que imprimi ao roteiro de minha fala. Trata-se, afinal de contas, de um diálogo sobre o grande teatro que é a literatura diante de suas fontes orais.

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