Por Saskia May
Publicado no The Badger

 

Publicado como uma “biomitografia”, Zami [lançado originalmente em 1982 e que chega agora ao Brasil pela Editora Elefante] é o único romance de Audre Lorde. Baseado em sua infância em Nova York nos anos 1930 e 1940, e em suas experiências como lésbica negra na América nos anos 1950, é um livro que combina perfeitamente mito, biografia e história. Lorde, que se autodefine como uma “poeta negra, lésbica, mãe, guerreira”, é mais conhecida como poeta, ativista e ensaísta. Mas a narrativa bonita e expressiva de Zami faz com que seja difícil não se apaixonar pela prosa da autora.

“Eu era gay e negra”, escreve Lorde. Seu romance é, acima de tudo, uma ode à interseccionalidade — termo cunhado pela professora Kimberlé Crenshaw em 1989, em seu artigo jurídico, “Desmarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics” [Desmarginalizando a interseção entre raça e sexo: uma crítica feminista negra da doutrina antidiscriminação, teoria feminista e políticas antirracistas]. Para Crenshaw, a interseccionalidade destaca a maneira como múltiplas identidades — raça, sexo, gênero, classe, deficiência, orientações sexuais — se sobrepõem, além das maneiras como essas identidades se relacionam com sistemas de privilégio e opressão. As mulheres negras, como Lorde, muitas vezes “experimentam a dupla discriminação, os efeitos combinados de práticas que discriminam com base na raça e com base no sexo”. “A experiência interseccional”, argumenta Crenshaw, “é maior do que a soma do racismo e do sexismo, e qualquer análise que não leve em conta a interseccionalidade não pode abordar de forma suficiente a maneira particular pela qual as mulheres negras são subordinadas”.

Relembrando como é impossível “ser querida, ser amada, ser aprovada”, enquanto “menina negra gorda, nascida quase cega, ambidestra e gay”, Lorde observa que “a questão da aceitação tinha um peso diferente para mim”. Ela é astuta ao capturar sua experiência como uma mulher negra e queer: “Se ninguém vai simpatizar muito com você de qualquer jeito, não importa tanto o que você se atreve a explorar”. Articulando as interseções entre as quais ela existe, escreve Lorde, “quando suas irmãs negras do trabalho acham que você é maluca e fazem uma vaquinha entre elas para comprar, na hora do almoço, um pente quente e uma chapinha”, quando “irmãos querem te abrir à força para ver o que te faz funcionar por dentro”, e as “garotas brancas te olham como um petisco exótico” e “todos os meninos brancos falam para escolher entre revolução ou dinheiro”. Com uma amiga negra e lésbica, Lorde reconhece que elas compartilharam “tanto uma batalha quanto uma força que eram inacessíveis às nossas outras amigas”.

De amizades, introspecção, apaixonar-se e desapaixonar-se, as representações de Zami sobre as lutas dos corações partidos, da pobreza e da pressão acadêmica são nada menos que brilhantes. Crescendo no Harlem da década de 1930 com problemas de visão, o que afetou muito sua capacidade de ler e aprender, Lorde articula como é ser deixada para trás, como é estar olhando de fora, “meu coração doeu e doeu por algo que eu não podia nomear”. Sentimos a solidão de Lorde quando ela caminha pelas ruas de Nova York com o coração partido em uma véspera de Ano-Novo. Lamentamos suas perdas, sua luta para ser aceita na escola, apesar de ser “a garota mais inteligente da classe”. O “racismo estadunidense” que “era uma realidade nova e esmagadora” é aquele que Lorde suporta mesmo quando nem sempre o reconhece, como quando, ainda criança, é impedida de comer sorvete em um salão com sua família, ou quando ela pede à família para comer no vagão-restaurante, mas sua mãe responde que é muito caro — e não que é ilegal para os negros comerem nos vagões-restaurante dos trens que trafegam pelas linhas férreas do Sul dos Estados Unidos em 1947. “Já que o único lugar que eu não conseguia ver claramente era atrás dos meus próprios olhos”, escreve Lorde, “obviamente o problema estava em mim. Eu não tinha palavras para o racismo”.

Mas Zami não é feito apenas de sofrimento e tragédia: embora haja muita dor e desespero, também há muito o que comemorar. Quando Lorde viaja para a Cidade do México em uma intensa jornada de autodescoberta, ela é extasiada por sua beleza, “cheia da excitação causada pela curiosidade”, e não podemos deixar de enxergar seu amor poético pela vitalidade, pela luz e pela “cor deslumbrante”. Embarcando em seu primeiro relacionamento sexual e lésbico, a onda de paixão juvenil de Lorde gera um texto maravilhoso, “voltar para casa, para uma alegria para a qual eu tinha sido feita”, “eu apenas me perguntava, silenciosamente, como não tinha percebido desde sempre que seria assim”. A representação do sexo em Zami é pura arte, erótica, imersiva e profundamente sensual. Lorde nos faz sentir seu prazer e satisfação, “minha boca finalmente contra a dela, a respiração rápida, perfumada, profunda, sua mão se entrelaçando em meu cabelo”.

O uso sugestivo e requintado de imagens flui pelas páginas de Zami. Ao escrever, no primeiro capítulo, como sua mãe “sabia que coisas verdes eram preciosas e conhecia as qualidades serenas e curativas da água”, o romance de Lorde é uma homenagem à beleza e à magia cativante encontrada no cotidiano. De beber café com leite em um café ao ar livre na Cidade do México, às “vívidas árvores de jacarandá” que “pingavam suas flores para o lado de fora”. Lorde é exata e tentadora ao retratar suas cenas. No entanto, sua escrita realmente brilha quando se trata de metáforas. Tomemos, por exemplo, quando a jovem Lorde começa a menstruar: “eu me tornei uma mulher… percebi com um choque de prazer e surpresa, que eu estava quase da altura da minha mãe”. Quando deixada sozinha na cozinha, longe dos olhos de sua mãe sempre presente, Lorde esmaga alho, cebola e aipo com um pilão, a moagem das ervas despertando-a para sua própria sexualidade: “na cozinha da minha mãe, só havia um jeito certo de fazer qualquer coisa. Talvez minha vida não tivesse se tornado tão simples assim, no fim das contas”. Essa relação complexa e ambivalente é retomada ao longo do livro, uma relação que continua a deixar Lorde e seus leitores perplexos. É somente quando Lorde começa a ver plenamente a dor de sua mãe, sua cegueira e sua força, que ela começa a enxergá-la como separada de si mesma e a sentir liberdade em reconhecer isso.

Nessa verdadeira carta de amor arrebatadora para os relacionamentos entre mulheres, pois “cada mulher que um dia amei deixou sua impressão em mim”, Lorde constantemente aborda facetas de vulnerabilidade, tristeza e desejo em sua prosa. Ao explorar questões universais de raça, gênero, classe e sexualidade através de uma lente profundamente pessoal e íntima, Zami continua a ser uma leitura poderosa e duradoura, pois ainda precisamos aprender e considerar completamente o que significa interseccionalidade. Como observa Crenshaw, muitas vezes há uma “tendência a tratar raça e gênero como categorias mutuamente exclusivas de experiência e análise”.

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